O século XIX e início do século XX foram marcados por um discurso no qual o corpo feminino era representado como tributário do corpo da mulher, visto na sua condição puramente biológica. Apreende-se, nesse momento da história de nosso pensamento ocidental, então, o corpo feminino enquanto marcado por uma singularidade: o de ser tomado em sua face invisível. Tal invisibilidade transporia o domínio de sua superfície tangível, prestando-se a funcionar como enigma a ser interpelado e como ponto cego, a partir do qual o corpo feminino se mostraria em sua ambigüidade, dimensionado que estava a partir do princípio masculino como seu modelo referencial. A afirmação da preponderância do masculino por sobre o feminino é patente, então, através da afirmação do masculino como princípio universal, encontrando seu alicerce na suposição do feminino como variante inferior do masculino, tributária da própria forma como, nesse período, imprimia-se a definição social dos órgãos sexuais a partir de apropriações falseadas de suas propriedades naturais.
Associando-se feminino e corpo, observa-se, ainda, que a representação filosófica do corpo manifesta uma regularidade desde Platão até o positivismo moderno: a de ser tomado como o inimigo principal da objetividade. Nessa constante, o predomínio da relação entre corpo feminino e baixo ventre – aludindo a forças naturais - e do masculino com a cabeça – representando as forças racionais – demonstra, com as devidas variações em momentos diferentes do pensamento filosófico, a dificuldade de abordar o Outro sexo para além de uma lógica misógina. Se, antes do final do século XIX, só era possível representar o corpo da mulher segundo o seu sexo biológico, é relevante a observação de que, em meados desse mesmo século , os discursos médicos sobre a histeria, associavam-na às perturbações dos órgãos genitais femininos, como exteriorização da face invisível do corpo.
Por outro lado, essa forma de pensar o feminino e representá-lo dava-se a ver nos discursos sociais, que manifestavam as representações imaginárias do feminino como fantasma do anatômico, entrecruzando-se com o discurso mítico-religioso, pois este via, nesse fantasma-anatômico, a ligação entre a interioridade do corpo feminino e a face demoníaca da criação humana enquanto metáfora da vida. O discurso sobre o corpo apoiava-se, então, na idéia de que o corpo feminino continha em si uma dimensão obscura capaz de romper a ordem natural da exterioridade corpórea e produzir uma desordem invisível, indomável e, até mesmo, sobrenatural.
Laéria Fontenele
picture by Aldemir Martins
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