25 de abr. de 2008

Confissões íntimas de um infiel resignado


Escrevo estas linhas sentado na sala de leituras de um albergue para peregrinos em Haridwar, uma cidade sagrada às margens do rio Ganges, no norte da Índia. Aqui se encontra o túmulo de Anandamayi Ma, uma santa de Bangladesh que viveu no século passado.

Ela era uma mulher linda, profundamente iluminada, de gestos e palavras puros e comoventes. Seus milagres inspiraram a vida de milhões de pessoas, inclusive de Mahatma e Indira Ghandi.

Aqui encontro um guru (mestre), Swami Vijayananda, um monge que foi encarregado por Anandamayi Ma de guiar os fiéis estrangeiros. Ele é um velhinho lindo e fascinante, muito amigo, engraçado, inteligente e carinhoso.
Todos os dias, às quatro e meia da tarde, grupos de peregrinos, quase sempre franceses com ar de bonzinhos alternativos, fazem um círculo em torno de Swami Vijayananda para ouvir suas palavras.

Mas eu confesso: para mim o maior atrativo desses encontros são os doces deliciosos que a francesada põe na roda. São marrons-glacês, pralines e bombons caríssimos, produzidos por chocolatiers tradicionais de Lyon ou Lille.
Enquanto Vijayananda explica a importância da meditação diária, não paro de rezar para que ele decida abrir novamente a caixa de chocolate e mandar ver uma outra rodada de trufas. Ontem, para combater meu profundo agnosticismo, Vijayananda recomendou que eu fosse ao templo de manhã bem cedo ouvir as preces.

Segundo ele, talvez um lugar impregnado pela fé de milhões por tantos anos despertasse em mim uma nova possibilidade espiritual. Tive boa vontade. Fui ao templo, cruzei as pernas, fechei os olhos e comecei a pedir a Deus que viesse a mim. Mas fui distraído por uma irritante coceira no pé. Quando comecei a me concentrar novamente, uma indiana gostosíssima, dessas que param o trânsito e interrompem mantra, entrou no templo e se ajoelhou do meu lado. Daí por diante foi tudo por água abaixo. Em vez de meditar, comecei a sonhar com o curry do almoço e a pensar na dança do Créu.

Desisti da epifania e fui checar meus e-mails concluindo pela milésima vez que, apesar dos meus esforços, meu sentimento religioso não vai além de uma pura e simples curiosidade antropológica. Como diria Millôr Fernandes, “graças a Deus, sou ateu”. Adoraria acreditar em santos e milagres, rezar, meditar, levitar, fazer comunhão, ler a Torah, comer hóstia, acender velas e entrar em transe. Talvez me sentisse muito mais livre de minhas prisões e menos aterrorizado com o mundo.

Sem conseguir crer, por que não abraçar o racionalismo ateísta tão em voga, encabeçado pelo cientista inglês Richard Dawkins? Mas não é ele uma outra forma de fé, um contrário árido, apoético, tão chato e cego quanto todos os fundamentalismos religiosos?
Quero ir a todas as Fátimas, Jerusaléns, Mecas, Vaticanos e Dharmsalas. Quero manter o coração e a cabeça abertos para todos os mistérios. Quero poder achar graça de tudo. Quero dormir um sono delicado e quero acordar continuando a querer. Talvez me baste saber que algumas perguntas não têm resposta.
Henrique Goldman

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