29 de ago. de 2008

Aliviando a consciência pesada

Até que se prove o contrário, ainda não inventaram uma maquininha que nos faça voltar no tempo e agir de maneira diferente para remediar determinada situação. Somente no cinema isso é possível. Deve ser por isto o tamanho sucesso (já há duas décadas) do filme De Volta para o Futuro: a vontade que muitas vezes sentimos de regressar e fazer tudo de outro jeito. Para aliviar a culpa que nos atormenta. E se naquele dia eu tivesse agido diferente? E se tivesse ido por outro caminho, se dissesse aquela palavra que tanto queria dizer, ou se não tivesse sido teimoso? Ninguém tem bola de cristal para saber o que aconteceria, e o que está feito, está feito. Mas quando essa série de perguntas aparece, a impressão que dá é que a culpa é a mãe das frases no condicional que nos causam mais angústia. Repare. Sem culpa, este tempo verbal não teria a menor graça. A verdade é que revolver o passado é uma de nossas (vãs) artimanhas para tentarmos nos livrar deste fardo que carregamos nas costas: a culpa. Ela nos faz perder o sono, traz dor no peito, nó na garganta. Martela dia e noite em nossa cabeça. Graças a seu poder devastador, costuma ser utilizada freqüentemente e com sucesso como o principal instrumento de quem gosta de fazer chantagem emocional. É amiga e vizinha de outra tinhosa, a vergonha. A culpa se senta como um urubu nos ombros de todos nós, diz o psicólogo James Hollis, diretor do Centro de Estudos Jung de Houston, nos Estados Unidos. Todos nós? Sim, todos. Ninguém está livre de sentir culpa ela é inerente a nossa vida.
É lógico que há quem se sinta mais ou menos culpado. E também há jeitos e jeitos de lidar com esse sentimento. Se não podemos viver sem culpa, também não precisamos fazer com que ela seja corrosiva muito menos que sirva de álibi para remexermos aquilo que já foi feito. O pulo do gato é que a culpa pode, sim, ser um poderoso instrumento de transformação e conhecimento, e até mesmo se converter em um substantivo bastante construtivo: a responsabilidade, por exemplo. A culpa é de quem?
Antes de insultar a culpa, seria melhor apresentá-la a você. Quem seria o culpado por ela, afinal? De onde vem essa sensação que tanto nos apoquenta? A culpa é um sentimento que parte de alguém que transgrediu (ou acha que transgrediu) alguma norma, seja ela social, seja legal, moral, ética ou religiosa. É a violação de alguma regra que pode ou não ter causado dano a alguém. Mas por que diabos todo mundo tem essa sensação? Segundo Sigmund Freud, a culpa aparece logo nos primeiros anos de vida, quando a criança começa a perceber que a mãe não é inteira de sua propriedade.
A criança vai sentindo, aos poucos, a perda das atenções da mãe, sua principal fonte de afeto, com a entrada de um terceiro elemento na história: o pai. Essa perda vem carregada de um sentimento de raiva pelo próprio pai. E raiva traz culpa. Em linhas gerais, esse é um breve resumo do famoso complexo de Édipo, que é a base da formação da personalidade de todos nós.
Ao sentirmos culpa, freamos instintos que podem ser agressivos. Por isso, para a psicanálise, a culpa é o resultado do advento da própria civilização, que procurava limitar seus impulsos. Nascemos com um programa inviável, que é atender aos nossos instintos, mas o mundo não permite, dizia Freud. Somente por sentirmos culpa é que aceitamos as regras impostas pela cultura. A culpa acaba estabelecendo limites e possibilita o convívio. E regras existem em todas as sociedades, desde que o mundo é mundo concordemos ou não com elas.
Na Idade do Gelo, por exemplo, no início do processo de humanização, nossos antepassados já criavam regras de convivência, como a proibição do incesto, por exemplo.
Essa condenação só seguiu adiante e se tornou a principal característica da nossa formação cultural por haver o sentimento de culpa presente. Nós introjetamos valores da cultura em que estamos inseridos.
Cada vez que saímos desses registros, aparece a culpa, afirma a psicóloga Mirian Chnaiderman. Então parece que a culpa nem é tão vilã assim como se imagina. Em princípio, não mesmo. O problema é quando ela se desenrola.
Isso porque o sentimento de culpa vai além da transgressão. Ele é também, no fundo, um desejo de perfeição. Cada dia mais, precisamos fazer escolhas e admitir que podemos ter errado em uma dessas escolhas pode ser muito doloroso. Optar entre ir por este ou aquele caminho realmente angustia. Contudo, pode ser uma excelente oportunidade para o exercício do autoperdão, aquele que nos força a um entendimento, à compreensão de nós mesmos. Se tomamos uma atitude, foi porque acreditamos que era o melhor a ser feito naquele momento. Agimos de acordo com os instrumentos que tínhamos para agir.
A dificuldade se autoperdoar faz com que uma das culpas mais freqüentes seja o ressentimento por coisas que não foram realizadas na hora certa e no momento exato. A dor do filho que não demonstrou amor pelos pais antes de morrerem; a mãe que decidiu deixar de passar mais tempo com as crianças para aceitar um novo cargo no trabalho; o jovem que gastou toda sua mesada em jogos de videogame em vez de comprar livros. Essas são culpas modernas, culpas recorrentes nos dias de hoje.O que leva a crer que, quanto mais complexa fica nossa sociedade, mais culpados nós ficamos.
Até o século 19, por exemplo, a culpa estava ligada diretamente ao pecado e ao temor a Deus. Não que isso fosse fácil, mas era possível, ao menor sinal de falha, se confessar ao padre ou rezar. Com as revoluções de valores e de comportamento do século 20, a coisa mudou de figura. O homem contemporâneo se tornou e continua se tornando cada vez mais livre para fazer o que bem entende. Isso aumentou significativamente suas possibilidades de escolha e, claro, de culpa.O sentimento de culpa pode ser, no fundo, um desejo (demasiado humano) de perfeição
O papel da religião
Já que falamos em temor a Deus, é bom lembrar que a culpa nossa de cada dia tem muito a ver com a educação que recebemos, com nossos valores morais e religiosos a respeito daquilo que é certo e daquilo que é errado. A tradição judaico-cristã contém uma parábola perfeita para a culpa. Adão e Eva comem o fruto proibido da Árvore do Conhecimento. Logo descobrem que estão nus e que são responsáveis por decisões que venham a tomar. Eles acabam expulsos do Paraíso e ainda deixam de herança o pecado original, um fardo que exige expiação perpétua da humanidade. Mas por que tinha que existir o fruto proibido? Bem, na sua onisciência, Deus com certeza sabia que ocorreria a transgressão.
Outro caso subseqüente é a história de Caim e Abel. Depois de matar o irmão, Caim não apenas é declarado culpado. Ele é também marcado na face, o que o obriga a carregar até o fim da vida o sinal de sua infâmia. Mesmo após o primeiro crime e a expulsão do Paraíso, Deus continua dialogando com o ser humano o tempo inteiro no Antigo e no Novo Testamento. Oferece um poderoso apoio emocional de pai, de salvador, de protetor. Por outro lado, estabelece severos padrões morais a serem seguidos.
Quando não são, vem a culpa. Pode parecer que se trata de um problema da civilização ocidental, mas a culpa se estende por qualquer religião, uma vez que está ligada ao ato de transgredir. Para o católico pode ser violar os Dez Mandamentos; para o judeu, comer carne de porco; para o hinduísta, comer quaquer tipo de carne. E por aí vai.
Ainda seguindo a trilha do contexto religioso, a educação que recebemos foi muito pautada em cima de conceitos hoje discutíveis o castigo, por exemplo. Na Bíblia, há um provérbio atribuído a Salomão que diz: Quem poupa a vara é porque odeia seu filho. Quem o ama, repreende-o com freqüência. Isso era comum em toda a Antiguidade. Os castigos aplicados em Esparta eram conhecidos por sua dureza. Mais tarde, na Idade Média, era comum a flagelação ser usada na educação.
No Brasil, até pelo menos a metade do século 20, ainda era usada a palmatória nas escolas.
A indução da culpa era um meio disciplinador. E não é raro, até mesmo nos dias de hoje, ouvir nas escolas frases como: Você deveria se envergonhar do que fez; Ainda bem que seu pai não está aqui para ver isso.
É como se o erro fosse sempre uma porta para o castigo daí o medo de errar, e a culpa quando o erro é inevitável. A questão é: deixar de castigar não significa deixar de educar. Muito pelo contrário.
Quando castigamos um filho porque ele fez algo que não achamos bom, ele pára o caminho dele naquele castigo. Mas quando falamos Isso você não pode fazer, encontre um outro jeito que seja mais aceito, que seja ético, estamos desenvolvendo um futuro cidadão, uma pessoa que não vai parar diante de pedras no caminho, que vai procurar uma maneira de superar obstáculos, afirma o psiquiatra Içami Tiba.
A religião pode ser historicamente uma fonte de culpa, sim, tendo reverberado na educação de todos nós. Por outro lado, esta mesma religião é também sua principal fonte de expiação. A prática religiosa, em que o fiel busca redenção em Deus, é uma das melhores formas de aliviar o remorso. Seja rezando, seja contando seus pecados ao padre no confessionário, seja ajoelhando-se em prostrações, ou até chicoteando as costas em praça pública como autopunição. Ao mesmo tempo que o sagrado julga e pune, ele nos redime e alivia.
Há pessoas que costumam se sentir culpadas o tempo todo, de forma neurótica
Doentes de culpa
A culpa não é, em si, necessariamente, uma doença, mas pode desencadear algumas enfermidades, sim. Há pessoas que tendem a se sentir culpadas o tempo todo. Alguém que experimenta culpa exacerbada pode fazer com que ela vire uma neurose. Normalmente, é o tipo que se sente inseguro, tem dificuldade de tomar iniciativas até por medo de errar. Nunca aceita elogios, não consegue ser homenageado, aquele que ninguém consegue encontrar um presente para dar no dia do aniversário. Não tira férias, trabalha demais, está sempre angustiado. Tem baixa auto-estima, nunca acredita em si mesmo.
Como é de se esperar, a vida sexual de um culpado é obviamente difícil. Em casos extremos, um atormentado pela culpa isolase dos amigos e da família e, no limite, pode tentar até o suicídio. Com tudo isso, não é de estranhar que possam aparecer somatizações. A depressão é a doença mais comum dos culpados crônicos. O remorso também pode, em alguns extremos, levar ao alcoolismo e ao consumo de drogas. E, para tratar tais sintomas, é preciso chegar à fonte do problema, ou seja, à culpa.
A terapia deve ser profunda, chegar até onde mora o sentimento, uma vez que culpa não é uma emoção passageira. Qual a diferença entre uma coisa e outra? A emoção é algo mais primitivo, surge mais espontaneamente no ser humano. Mas costuma ser transitória, passa logo. Arroubos de paixão podem ser um bom exemplo de emoção. Sem contar que a emoção é uma sensação visível: alguém apaixonado fica ruborizado ao ver o objeto de sua paixão. Já o sentimento é outra história.
Ele é pautado pela cultura, pelo modo de vida e pelo aprendizado social. Aprendemos a ter sentimentos no decorrer da vida com pais, professores, amigos, líderes espirituais. Assim, vamos aprendendo a sentir culpa, cada vez mais e mais. Por isso ela acaba se enraizando. Muito bem: a culpa pode ser ve nenosa quando excessiva e causar até doenças. Mas também ela precisa existir, pelo menos um pouquinho.Na dose certa, ela demarca os limites do que podemos ou não fazer, dos nossos valores, daquilo que consideramos ético e justo. Apenas pessoas com distúrbios de caráter são capazes de infringir regras sem sentir o mínimo arrependimento.
Não há consenso entre os médicos sobre as razões dessa ausência de um sentimento tão essencial. Especula-se sobre falha genética, bioquímica e até sobre traumas sofridos na infância. Dados da Organização Mundial de Saúde mostram que 1% da população mundial é portadora do distúrbio. Ou seja, uma em cada 100 pessoas é capaz de causar o mal sem ter um pingo de remorso. No mundo de hoje, a culpa ganha contornos terríveis por um lado e invisíveis, por outro, diz Mirian Chnaiderman. Vivemos uma crise de valores, falta-nos uma mediação para lidar com isso. Essa mediação talvez seja um pouco de culpa. Mas, segundo Mirian, não deve ser no formato de culpa como conhecemos. A culpa deve ser transformada em percepção do outro, em formas de enxergar melhor o outro. Assim, ela vira um sentimento positivo, afirma.
Realmente, de nada adianta sentir culpa, ao infringir uma norma, e ficar com ela ali, guardada dentro do peito. Quando a culpa aparece, a primeira pergunta a se fazer é sobre a voluntariedade de seu ato. Será mesmo que você teve a intenção de criar um problema para o outro? Provavelmente não. Mas isso não o exime da responsabilidade sobre o que ocorreu. Mas repare que responsabilidade é bem diferente de culpa. A melhor maneira de você se aliviar da culpa é aceitar a crítica por suas ações, desculpar-se e reparar o dano causado, escreveu o psiquiatra americano David Viscot.
Quem assume uma responsabilidade está tirando a culpa da sombra, está jogando esse sentimento para fora. É um primeiro passo para o entendimento do que aconteceu e por que aconteceu, para sua compreensão. Somos os únicos seres no universo e isso já foi provado cientificamente capazes de sentir culpa. Como anota o médico e escritor Moacyr Scliar no livro Enigmas da Culpa: Mas também somos os únicos seres capazes de iluminar nossa culpa. E culpa iluminada é culpa domada.
Iluminado, o dedo acusador da culpa deixa de ser um algoz para ser simplesmente um dedo, parte do nosso corpo, parte da mão que nos fez humanos.É sempre bom se perguntar sobre a real natureza de nossos atos no dia-a-dia
Sem culpa nenhuma
Algumas idéias para você pensar sempre que se sentir culpado Não negue a culpa. Admita que errou, jogue luz sobre o problema. Exercite o autoperdão. Antes de perdoar alguém, desculpe você mesmo. Não projete a culpa nos outros. Não deixe que ninguém (nem mesmo a família!) manipule sua culpa. Pergunte-se sobre sua intenção ao cometer o ato. Peça desculpas e procure reparar seu dano. Lembre-se de que responsabilidade é diferente da culpa. Assuma sua responsabilidade sem se culpar por isso. Aprenda com o que aconteceu. Identifi que o erro e procure evitá-lo numa próxima vez. Não fique remexendo o passado e querendo voltar àquilo que já foi feito. Mariana Sgarioni
Picture by Claude Monet

Um comentário:

Anônimo disse...

Otimo texto!
muito bom! estava procurando algo sobre isso, pois me sinto culpada. Não de ter feito mal a alguém, mas de ter feito mal a mim mesma por ter deixado que uma situação acontecesse.

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