2 de set. de 2008

As várias utilidades de uma navalha

Qualquer criança sabe o que é kiss, em inglês. Significa beijo. Mas K.I.S.S. também é o nome de um princípio muito curioso, com grandes e amplas aplicações em várias – senão em todas – as áreas do conhecimento e do comportamento. O princípio KISS se resume em: Keep It Simple, Stupid – em português, "Mantenha Isto Simples, Burro”.
Einstein disse, certa vez: "Tudo deve ser feito da forma mais simples possível, mas não mais simples que isso". Antoine de Saint Exupéry, o autor do delicado e profundo romance "O Pequeno Príncipe" também expressou algo maravilhoso em relação a este contexto: "A perfeição não é alcançada quando já não há mais nada para adicionar, mas quando já não há mais nada que se possa retirar".
Um frade franciscano que viveu no século XIV, Guilherme de Ockham foi um grande pensador de seu tempo. Coube a ele a honra de demarcar a virada do pensamento escolástico medieval em direção ao pensamento científico moderno.
Guilherme de Ockham – algumas vezes grafado Occam – nasceu no vilarejo de Ockham, na Inglaterra. Estudou na Universidade de Oxford, onde também lecionou por algum tempo. Foi chamado diante do Papa para prestar contas por suas idéias pouco ortodoxas. Anos depois foi oficialmente excomungado devido ao seu apoio ao grupo conhecido como "Os Espirituais", a ala extremista da Ordem Franciscana que se opunha à opulência da Igreja. Então, fugiu para a corte do Imperador Ludwig, em Munique, um rival do Papa, onde viveu até sua morte.
Ockham poderia ser classificado como empirista e cético. Empirista por defender a necessidade da experimentação como fonte do conhecimento, em oposição à crença corrente de que o verdadeiro conhecimento só poderia ser obtido pelo uso da razão pura. Cético, na medida em que dizia ser impossível provar a existência de Deus através de qualquer ferramenta racional – embora não fosse por isso um descrente. Ao pregar a separação entre a religião e a razão, Ockham traçou uma linha divisória entre os assuntos da fé e da razão e permitiu libertar a filosofia, berço comum de todas as ciências, da teologia.
Hoje, o nome de Ockham se encontra imortalizado no famoso argumento de sua autoria conhecido por "Navalha de Ockham", o princípio de que diante de duas teorias que explicam igualmente os fatos observados, a mais simples é a correta. Em outras palavras, se uma explicação simples basta, não há necessidade de buscar outra mais complicada. E=mc2, entropia, caos, herança genética, etc são princípios científicos mal compreendidos e vulgarizados pela repetição. Assim também Navalha de Ockham se tornou um bordão utilizado indevidamente por leigos e céticos ansiosos demais em descartar explicações incomuns.
Quando se diz que a teoria mais simples é a correta, não se quer dizer que a teoria mais fácil de se entender é a correta. Em primeiro lugar porque simplicidade é um critério pessoal e subjetivo. Além disso, a natureza certamente não tem vocação para a simplicidade; apesar de algumas leis fundamentais da física serem expressas de forma surpreendentemente simples – como as leis de Newton – isto não significa que a explicação mais simples seja sempre a correta, ou que seja correta num número maior de vezes.
Na verdade, à medida que nos aprofundamos nos terrenos da física quântica ou da cosmologia, ocorre justamente o contrário e as explicações tornam-se cada vez mais complexas. Por isso é preciso compreender que a Navalha de Ockham não trata de descartar hipóteses só porque são mais difíceis de entender. Sua proposta é que sejam descartadas as hipóteses que, em igualdade de condições com outras, possuem mais suposições ou mais pressupostos, já que quanto mais suposições, maior a chance de que alguma delas esteja errada.
Abraham Shapiro

Um comentário:

Anônimo disse...

ARTIGO FENOMENAL

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