10 de abr. de 2009

Perdendo a batalha da memória

A durabilidade da incômoda lembrança do regime militar e do golpe de Estado ocorrido há 45 anos certamente tem muito a ver com as violações dos direitos humanos e dos direitos políticos dos cidadãos nas prisões arbitrárias, na tortura, nas penas descabidas, nas execuções sumárias, nos banimentos, um legado de feridas incuráveis.
Mas tem a ver, também, com um conjunto de fatores intervenientes referidos a conflitividades que não se reduziam ao pretexto do golpe, o de uma ameaça comunista.
À medida que o tempo passa, a memória desses fatores e a própria memória de um cotidiano de acomodações autodefensivas em face da violência do regime vão se perdendo. Sobretudo, porque o marco de compreensão que temos do processo histórico brasileiro é redutivo e pobre. Tudo que ultrapassa o bipolarismo de direita e esquerda tem que ser a ele reduzido, senão ficamos confusos e perdidos.
Num país em que, historicamente, no Império, eram os conservadores que executavam os projetos dos liberais, não é de estranhar que certas esquerdas façam as vezes da direita e a direita se proponha a concretizar programas de esquerda. Aqui, tudo parece trocado. Nessa perspectiva pobre e insuficiente, é muito difícil levar em conta a importância que teve nas tensões do regime autoritário o amplo conflito ideológico nos partidos de esquerda; os conflitos entre capitalismos num momento em que o capital se globalizava e se expandia; os conflitos e tensões no interior das diferentes igrejas. A ditadura militar foi claramente anticatólica, apesar da enorme contribuição que a Igreja Católica dera para a concretização do golpe de Estado com as rumorosas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, um clamor de multidões na rua em favor da deposição do presidente Goulart. Tanto a Igreja Católica quanto as igrejas protestantes estavam interiormente divididas, parcelas das próprias hierarquias sensibilizadas pela miséria, pelas injustiças, pela falta de liberdade, pelo colonialismo. Nascia já em meados dos anos 50 uma visão moral e religiosa da política que teria repercussões na África e na América Latina. A Confederação Evangélica do Brasil chegara a lançar um documento sobre A Responsabilidade Social das Igrejas, um apelo a que seus fiéis abandonassem o confinamento em que viviam nas respectivas igrejas, alheias aos sindicatos e à política. Mesmo naqueles em cuja boca o discurso era radical, a demanda social e política, no fundo, era conformista. A demanda de reforma agrária embutia a extensão dos direitos trabalhistas ao campo. O que aparecia como luta pelo socialismo era na verdade uma luta pela superação capitalista do capitalismo retrógrado e colonial.
Pouco tempo depois do golpe, veio ao Brasil para uma conferência na Fiesp o subsecretário de Estado americano, Walt Rostow. Sua conferência foi para defender a melhora no nível de renda da população rural pobre para que houvesse uma ampliação significativa do mercado interno, o único modo de incrementar a industrialização do País. Ora, isso não era muito diferente do que as esquerdas haviam defendido antes do golpe. A diferença estava na organização política da mudança, e não na mudança pretendida. As esquerdas, com Jango, queriam isso e queriam uma reforma agrária. A ditadura também. O efeito do golpe foi o de reorientar o curso da história do Brasil. Impôs a opção por um modelo de capitalismo diverso daquele do nacional-desenvolvimentismo, um capitalismo dominado pelo mercado, e não pela política. Fechou as portas a um desenvolvimento nacionalista voltado para dentro. A tranca foi prender, confinar, expulsar, banir, matar. É nas entrelinhas das histórias das vítimas dessa opção que podemos ver e compreender o Brasil vencido. Mas foi nele, e não no passado, que surgiram as bases sociais do que veio a ser a redemocratização.
Quase como um símbolo desse truncamento, lembro da figura do general Euryale de Jesus Zerbini, que tentou levantar sua guarnição no Vale do Paraíba, nas horas do golpe, para marchar sobre o Rio de Janeiro e fechar o caminho aos golpistas insurretos que vinham de Minas Gerais para consumar a deposição de Goulart. Zerbini foi preso, reformado e privado de seu destino. Exilou-se na Faculdade de Filosofia da USP, onde foi fazer o curso de Filosofia. Lembro-me dele com cadernos e livros nas mãos, sentado numa das cadeiras do corredor, a cabeça branca, esperando o início das aulas da tarde. A maioria daqueles jovens não sabia quem ele era. Seria imensa deturpação se a memória dos anos cinzentos do regime militar ficasse circunscrita a simplificações ingênuas, esquemáticas e redutivas e nos levasse a exaltar a exceção para esquecer o rotineiro, sofrido e difícil. A busca de heróis a qualquer preço, nesse caso em particular, deixa de lado que houve um exílio interno, dos muitos que nas universidades, nas igrejas e nas fábricas permaneceram tecendo no dia a dia a preservação de valores democráticos, o ideal da justiça social e das transformações sociais e políticas, da luta miúda e surda travada nas salas de aula, à vista de espiões e delatores, nos salões de paróquia, nas privadas e pátios de fábrica em que se sussurravam as mensagens da resistência possível e necessária, em que se forjava a consciência cotidiana das contradições e das injustiças, em que um brasileiro dizia e outro brasileiro escutava. Estamos perdendo a batalha da memória cotidiana do período ditatorial, um cotidiano alterado pela necessidade da vigilância permanente, da desconfiança e do medo. Ela está sendo perdida para o novo oficialismo, que reconta a história contemporânea do Brasil seletivamente, desinteressado em relação ao fato de que a redemocratização foi ganha na retaguarda, e não na vanguarda apenas. Foi ganha nos insistentes e persistentes movimentos sociais que se multiplicaram e expressaram a resistência mais do povo ao autoritarismo, não raro muito longe das fragmentadas ideologias de compreensão circunscrita aos iniciados. José de Souza Martins

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