Os neurologistas são unânimes ao afirmar que o hipocampo (uma região do cérebro que recebe esse nome por causa de seu formato, que lembra o de um cavalo-marinho) é crucial para a memória. Mas os estudiosos divergem amplamente sobre como o ser humano cria e gerencia as recordações, e principalmente, sobre como esse processo cognitivo se desenvolve.
Recentemente, essa polêmica foi vista de um novo ângulo: não seria o hipocampo fundamental também para a imaginação? Além de propor um novo papel para essa área cerebral, a descoberta sugere a existência de um mecanismo de “construção narrativa”, comum à memória, à imaginação e ao pensamento.
Tal hipótese abre novas e interessantes perspectivas. Imagine, por exemplo, que você recebeu um convite para fazer um cruzeiro ao Caribe; segundo o cientista Demis Hassabis, aceitar esse convite é impossível sem envolver o hipocampo na decisão. O primeiro estudo publicado pelo pesquisador sobre esse assunto examina objetivamente as bases neurológicas do processo de imaginação dos fatos, que no jargão neurocientífico é chamado “construção”.
Hassabis afirma que para imaginar um evento são necessárias algumas operações usadas na recordação de situações, como algum grau de fantasia e a recuperação seletiva de informações relevantes da memória factual ou semântica. O estudo parte da hipótese de que a construção requer consciência da organização narrativa, temporal e espacial da experiência imaginada, ou seja, dos mesmos elementos estruturais importantes para recuperar episódios da memória autobiográfica.
Mas isso não é tudo. Hassabis, exímio jogador de xadrez e empenhado construtor de jogos de videogame nas horas vagas, sugere que a construção mental seja outra forma de pensamento e uma operação-chave do hipocampo. Atribui, assim, a essa área cerebral tão estudada, um papel que não foi previsto por nenhuma das duas principais teorias sobre suas funções. A primeira – chamada memória relacional ou teoria mnemônica – estrutura-se em experimentos com primatas e sustenta que a principal tarefa do hipocampo é conservar as memórias explícitas e, em particular, eventos autobiográficos que se constituem na nossa vida assim como os recordamos. Além disso, foca no armazenamento dos fatos no tempo e no espaço: fui ao Centro fazer compras numa tarde de sábado muito quente; um funcionário me atendeu por alguns minutos; depois fui cortar os cabelos; apreciei o ar condicionado do cabeleireiro.
O outro ponto de vista refere-se à teoria do mapa cognitivo. Fundamentada em experimentos com ratos, afirma que o hipocampo organiza as recordações das experiências conservando- as num mapa cognitivo neutro, enfatizando o armazenamento dos eventos nesse espaço: entrei em três lojas e depois atravessei a rua para ir ao cabeleireiro. Nenhuma dessas hipóteses, porém, tem muito a dizer sobre a construção dos eventos, uma vez que a informação factual é conservada e acessível, também, por meio da imaginação.
Hassabis e outros pesquisadores, contrariamente a essas teorias, defende que o hipocampo é fundamental na construção mental, independentemente da memória episódica – aquela que nos permite contemplar o futuro e rever o passado – e oferece elementos importantes para recuperação de lembranças e criação de possibilidades e cenários, ou seja, para a imaginação. Durante o estudo, cinco pessoas com amnésia causada por danos ao hipocampo – que têm dificuldade de formar novas memórias – deviam imaginar novas experiências, como a de encontrar-se dentro de um museu ou em meio a um mercado, por exemplo. A descoberta principal foi que os voluntários conseguiram imaginar os eventos propostos com mais dificuldade que os saudáveis. Um deles conseguiu imaginar tão bem quanto as pessoas sem lesão cerebral.
É neste ponto que confesso ter certo preconceito quanto à teoria de Hassabis. A minha área de pesquisa colhe sinais elétricos gerados pelos neurônios do hipocampo de ratos, enquanto eles tentam resolver problemas espaciais complexos. A esperança é de trabalhar a compreensão das bases neurofisiológicas do pensamento (ainda que não esteja comprovado que roedores pensem). Com efeito, conseguimos medir sinais fisiológicos que poderiam indicar que eles estão pensando, porém isso não nos trouxe, até agora, provas de que eles pensam, nem mesmo a explicação do que poderia causar os sinais elétricos. É desta experiência que deriva o meu ceticismo sobre os resultados de Hassabis: além desse déficit, não existe uma explicação para a escassa capacidade de imaginação dos pacientes com amnésia?
Podemos excluir as diferenças de inteligência e instrução, pois pesquisadores asseguraram que essas variáveis fossem similares nos pacientes e nos voluntários do grupo de controle. Já o método seguido para eliminar os controles referentes à memória por meio de experiências reais, antes mesmo de imaginá-las, pode parecer menos convincente. Para impedi-los de recorrer à memória, os estudiosos pediram que imaginassem cenários anônimos, novos, e que não usassem recordações pessoais. Mas é fácil dizer, o difícil é fazer. E bem mais complexo verificar. Quando procurei imaginar-me, por exemplo, num museu, descobri que estava confiando nas minhas referências individuais.
O salão de ingresso do meu museu imaginário baseava-se nas minhas recordações do Museu de História Natural de Washington, os objetos expostos no Museu Nacional de Praga, na República Tcheca, os visitantes do Tate Modern de Londres e a luminosidade da Galeria Nacional do Canadá, em Ottawa. A minha experiência era construída com fatos e elementos de experiências reais: reingressava na letra das leis do experimento, mas era contrária ao meu espírito. Se tivesse participado do teste, teria jurado que isso não era uma recordação pessoal e nem mesmo que se embasava na memória episódica.
O sinal característico da amnésia causada por danos no hipocampo é uma grave deficiência para a recuperação das lembranças episódicas. Assim, essa falha que limitou o número de fatos vivenciados, não seria o alimento da imaginação?A descoberta central da pesquisa teria evoluído mais se fosse acompanhada de outros testes. Todavia, este estudo é um ponto de partida para novas e interessantes pesquisas, e se os seus resultados forem ampliados, e confirmados, é possível que surja um novo modo de conceber o hipocampo e as suas funções. Acredito que o hipocampo, essa área cerebral, seja crucial para a imaginação. Mas sem experimentos adequados, por enquanto, só é possível – do ponto de vista científico – aceitar uma explicação mais modesta dos resultados referidos: o hipocampo é essencial para recuperar as recordações dos fatos ligados às experiências, ou seja, das situações vividas. Mas nada nos impede de imaginar que novas descobertas estão por vir.
Andre Fenton - Downstate Center da Universidade de Nova York
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