O filme A onda, baseado em história real que ocorreu na Califórnia em 1967, relata o experimento de um professor (Rainer) com seus alunos.
A ideia era, por meio de um trabalho prático, envolvê-los numa pesquisa sobre os governos autocráticos. Uma vivência que demonstrasse os mecanismos utilizados nos regimes fascistas/nazistas.
Rainer é o líder do grupo, o nomeia A onda e escolhe como mote a disciplina. Logo o grupo se sente poderoso e, de forma autoritária, ameaça e discrimina os que não pertencem a ele. Fortalecido pela união e, na posição de superior, retrata cenas que nos remetem à ideologia eugenista de Hitler. Elege o esporte como forma de propagar o poder e a supremacia do grupo. Rainer, envaidecido com o lugar de poder que a experiência pedagógica lhe proporcionava, demora em perceber que havia perdido o controle da situação. Quando o trabalho se encerra, um dos participantes, ao se sentir desfiliado e só, suicida-se após atirar num colega, ameaçar o professor e confessar: “Eu não sei viver sem A onda”.
Freud em Psicologia de grupo e a análise do eu já havia nos alertado da capacidade dos grupos de exercer influência sobre os indivíduos, alterando suas reações: “É fácil provar quanto o indivíduo que faz parte de um grupo se difere do indivíduo isolado; mas não é tão fácil descobrir as causas dessas diferenças”. Em grupo, os participantes são contaminados por um poder invencível, capazes de atos que, sozinhos, seriam impensáveis. Protegidos pelo anonimato, se sentem livres para atender às pulsões perversas. É quando o senso de responsabilidade desaparece. Contagiados pela ilusão de poder, se lançam em situações de perigo.
No grupo, todo sentimento e todo ato são contagiosos. O contágio provoca um fenômeno de ordem hipnótica, o que faz com que o indivíduo sacrifique o interesse pessoal em função dos interesses do coletivo. Individualmente pode até ser um civilizado, mas em grupo age como um bárbaro, ou seja, segue os impulsos sem constrangimento. O filme nos surpreende pela lucidez com que trata o tema do desamparo dos jovens, deixando claro que o perigo nazista não acabou. Como também aponta para o risco que uma família, ao não garantir ao filho um lugar no seu desejo, ao privá-lo do carinho que lhe é de direito, abre espaço para que esse busque acolhida em outras tribos e galeras. O tráfico, por exemplo, atua como abrigo a muitos garotos desamparados e solitários.
E nos faz pensar como estamos sendo perversos ao não conciliar o tempo da rua com o tempo da casa. Tornou-se lugar-comum reclamar que não temos tempo para conversar com o filho, mas sempre achamos tempo para levar o cachorro para passear, assistir a novelas ou jogos de futebol. Para o escritor Içami Tiba, “família é como empresa”, portanto deve ser administrada dentro dos mesmos critérios. Se todo discurso necessita de um sujeito que o sustente, significa que nós sustentamos o discurso que define a família como se fosse negócio. Tornou-se corriqueiro pais computarem o quanto investiram no filho – somando os custos de escola, livros e cursos extras. E se assustarem ao deparar com o resultado. Outrora, os filhos eram educados para serem herdeiros de um nome. A família cultuava valores como honra, reputação, fatores que causavam orgulho entre os pais. Hoje, a família é comparada com fábrica, coisa que produz mercadoria – sabão, Bombril.
Quando a sociedade troca a luta de classe pela luta de posição, significa que o importante não é conquistar um melhor emprego, uma profissão sólida, mas ganhar mais sem se interessar como. Importa que o indivíduo, por meio de aquisições, consiga se inserir em outra posição social. Mesmo que seja à custa de endividamento – trabalhar para pagar prestações. Ao adquirir objetos que simbolizam prestígio social – objetos consumidos por uma outra classe social –, ele tem a ilusão de que mudou de classe, de posição. Vivemos uma grande gincana pelos primeiros lugares, sem saber ao certo aonde queremos chegar – o importante é vencê-la. O que vale na disputa que travamos com o olho no custo/benefício é a chegada, não a caminhada. Pouco importa o processo, caminho que teríamos que construir na conquista da profissão sonhada. O filho da “família empresa”, ao operar na objetividade, vive a desvalorização dos sonhos. E, tal como um empregado rentável, deve gerar lucro, nunca prejuízo.
A disputa pelo sucesso traz um dilema para os jovens. Estudar, se esforçar para que, se a mídia os ensina que a causa do herói moderno é ele e seus interesses? Contudo, os desprovidos de ideais e não convencidos pela lógica do lucro se sentem desamparados. A que grupo pertencer, por que causa lutar? É angustiante sentir-se inútil e sem perspectiva. O que os leva a se engajar em uma ideologia, em propostas de um grupo, mesmo que estas sejam descabidas e insanas, como o fascismo e o nazismo? O indivíduo que não pertence a uma comunidade de bons sentimentos, que não se reconhece em projetos que o entusiasmam e contaminam, se sente perdido, sem sentido, oco. Frágil nas convicções, este se torna vulnerável e disponível para o mal. O mal pode ocorrer independentemente da intenção de quem o comete. Um jovem, ao pertencer a um grupo e ao se sentir reconhecido, querido e amparado, acaba por esse persuadido e comandado. Cegueira ativa Em Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt reconceitua o mal demonstrando seu caráter banal e leviano, denunciando a cegueira ativa e radical do pensamento no mundo.
O burocrata nazista, ao tentar se desresponsabilizar pelas mortes, ao justificar sua atitude atribuindo a responsabilidade a outros, nos alerta para o mal causado pela ausência de malignidade. É quando Arendt se propõe a analisar a obediência cega às leis, às ordens superiores. Eichmann, ao justificar sua atuação na deportação de milhões de judeus para os campos de extermínio nazistas, denuncia o perigo de obedecer aos imperativos do poder e das leis. Eichmann se julgava um funcionário honesto e cumpridor das ordens exigidas, justificando que cumpria o seu dever, que não só obedecia às ordens, como também às leis. Sabemos que as regras morais mudam de uma época à outra de acordo com os interesses e pressões dos que as inventam. Qual a natureza de um discurso moral imposto por médicos, pensadores – os codificadores morais? H. Himmler era responsável pelos experimentos médicos sem o uso de anestésicos – tentava comprovar cientificamente a deficiência mental dos indesejados (judeus, homossexuais, comunistas).
Himmler, com a ajuda de J. Goebbels, desenvolve e divulga o etos intelectual de uma raça superior – a ariana. O nazismo exemplifica um grupo que se agarrou de forma obsessiva numa ideia insana – cria uma nova moralidade e executa o que julgava ser correto. A crueldade paranoica dos nazistas pode ser comparada com qualquer outro tipo de adesão a grupos (religião, partido), quando esses recusam questionamentos ou análises críticas. Toda ação sobre coerção, obrigação, não pode ser considerada moral. A virtude ética comporta a consciência da falibilidade humana. O discurso da ciência, ao inaugurar o apagamento da enunciação (processo), promove a autoridade dos enunciados (produto). O imperativo categórico Mate! Compre! Goze! elimina a possibilidade de reflexão ao se dirigir, de forma absoluta, ao sujeito. Bem sabemos que foi a exclusão da enunciação e a exploração dos enunciados que permitiu aos nazistas apoiarem-se na ciência racial.
O nazismo desconstrói a ideia da boa ciência e nos alerta para os perigos da má ciência – a que se apresenta de forma autoritária, não dá ouvidos ao sujeito e se julga infalível. O discurso da ciência subverte o discurso do mestre exercendo a autoridade não apenas nos fatos, mas condicionando seu poder num falso pressuposto. O poder, seja econômico ou político, geralmente utiliza-se de dispositivos perversos que produzem saberes. Insanidades com efeito de verdade. Como no filme A onda, somos influenciados por discursos descabidos que pregam o paraíso pela via do consumo. Fascinados pelas promessas de felicidade, trocamos o mérito pela fama. Num relativismo cego, aceitamos absurdos como a violência envolvendo jovens, os abusos e crimes cometidos pela internet (cyberbullying), a erotização precoce e a gravidez na adolescência. Somos covardes quando não reinventamos outras formas de nos defender – julgando relevante ensinar ao filho revidar agressões, a “não levar desaforo para casa”. Com nossa arrogância regamos a semente do nazismo, ao nos julgarmos perfeitos, sem furos.
O mal é o não engajamento dos pais na educação dos filhos. O que um filho espera dos pais é que eles se preparem para enfrentar os desafios de sua época. Qual amanhã? Os piores crimes foram cometidos em nome do bem, com as melhores intenções, por homens com forte senso de dever.
Inez Lemos
A ideia era, por meio de um trabalho prático, envolvê-los numa pesquisa sobre os governos autocráticos. Uma vivência que demonstrasse os mecanismos utilizados nos regimes fascistas/nazistas.
Rainer é o líder do grupo, o nomeia A onda e escolhe como mote a disciplina. Logo o grupo se sente poderoso e, de forma autoritária, ameaça e discrimina os que não pertencem a ele. Fortalecido pela união e, na posição de superior, retrata cenas que nos remetem à ideologia eugenista de Hitler. Elege o esporte como forma de propagar o poder e a supremacia do grupo. Rainer, envaidecido com o lugar de poder que a experiência pedagógica lhe proporcionava, demora em perceber que havia perdido o controle da situação. Quando o trabalho se encerra, um dos participantes, ao se sentir desfiliado e só, suicida-se após atirar num colega, ameaçar o professor e confessar: “Eu não sei viver sem A onda”.
Freud em Psicologia de grupo e a análise do eu já havia nos alertado da capacidade dos grupos de exercer influência sobre os indivíduos, alterando suas reações: “É fácil provar quanto o indivíduo que faz parte de um grupo se difere do indivíduo isolado; mas não é tão fácil descobrir as causas dessas diferenças”. Em grupo, os participantes são contaminados por um poder invencível, capazes de atos que, sozinhos, seriam impensáveis. Protegidos pelo anonimato, se sentem livres para atender às pulsões perversas. É quando o senso de responsabilidade desaparece. Contagiados pela ilusão de poder, se lançam em situações de perigo.
No grupo, todo sentimento e todo ato são contagiosos. O contágio provoca um fenômeno de ordem hipnótica, o que faz com que o indivíduo sacrifique o interesse pessoal em função dos interesses do coletivo. Individualmente pode até ser um civilizado, mas em grupo age como um bárbaro, ou seja, segue os impulsos sem constrangimento. O filme nos surpreende pela lucidez com que trata o tema do desamparo dos jovens, deixando claro que o perigo nazista não acabou. Como também aponta para o risco que uma família, ao não garantir ao filho um lugar no seu desejo, ao privá-lo do carinho que lhe é de direito, abre espaço para que esse busque acolhida em outras tribos e galeras. O tráfico, por exemplo, atua como abrigo a muitos garotos desamparados e solitários.
E nos faz pensar como estamos sendo perversos ao não conciliar o tempo da rua com o tempo da casa. Tornou-se lugar-comum reclamar que não temos tempo para conversar com o filho, mas sempre achamos tempo para levar o cachorro para passear, assistir a novelas ou jogos de futebol. Para o escritor Içami Tiba, “família é como empresa”, portanto deve ser administrada dentro dos mesmos critérios. Se todo discurso necessita de um sujeito que o sustente, significa que nós sustentamos o discurso que define a família como se fosse negócio. Tornou-se corriqueiro pais computarem o quanto investiram no filho – somando os custos de escola, livros e cursos extras. E se assustarem ao deparar com o resultado. Outrora, os filhos eram educados para serem herdeiros de um nome. A família cultuava valores como honra, reputação, fatores que causavam orgulho entre os pais. Hoje, a família é comparada com fábrica, coisa que produz mercadoria – sabão, Bombril.
Quando a sociedade troca a luta de classe pela luta de posição, significa que o importante não é conquistar um melhor emprego, uma profissão sólida, mas ganhar mais sem se interessar como. Importa que o indivíduo, por meio de aquisições, consiga se inserir em outra posição social. Mesmo que seja à custa de endividamento – trabalhar para pagar prestações. Ao adquirir objetos que simbolizam prestígio social – objetos consumidos por uma outra classe social –, ele tem a ilusão de que mudou de classe, de posição. Vivemos uma grande gincana pelos primeiros lugares, sem saber ao certo aonde queremos chegar – o importante é vencê-la. O que vale na disputa que travamos com o olho no custo/benefício é a chegada, não a caminhada. Pouco importa o processo, caminho que teríamos que construir na conquista da profissão sonhada. O filho da “família empresa”, ao operar na objetividade, vive a desvalorização dos sonhos. E, tal como um empregado rentável, deve gerar lucro, nunca prejuízo.
A disputa pelo sucesso traz um dilema para os jovens. Estudar, se esforçar para que, se a mídia os ensina que a causa do herói moderno é ele e seus interesses? Contudo, os desprovidos de ideais e não convencidos pela lógica do lucro se sentem desamparados. A que grupo pertencer, por que causa lutar? É angustiante sentir-se inútil e sem perspectiva. O que os leva a se engajar em uma ideologia, em propostas de um grupo, mesmo que estas sejam descabidas e insanas, como o fascismo e o nazismo? O indivíduo que não pertence a uma comunidade de bons sentimentos, que não se reconhece em projetos que o entusiasmam e contaminam, se sente perdido, sem sentido, oco. Frágil nas convicções, este se torna vulnerável e disponível para o mal. O mal pode ocorrer independentemente da intenção de quem o comete. Um jovem, ao pertencer a um grupo e ao se sentir reconhecido, querido e amparado, acaba por esse persuadido e comandado. Cegueira ativa Em Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt reconceitua o mal demonstrando seu caráter banal e leviano, denunciando a cegueira ativa e radical do pensamento no mundo.
O burocrata nazista, ao tentar se desresponsabilizar pelas mortes, ao justificar sua atitude atribuindo a responsabilidade a outros, nos alerta para o mal causado pela ausência de malignidade. É quando Arendt se propõe a analisar a obediência cega às leis, às ordens superiores. Eichmann, ao justificar sua atuação na deportação de milhões de judeus para os campos de extermínio nazistas, denuncia o perigo de obedecer aos imperativos do poder e das leis. Eichmann se julgava um funcionário honesto e cumpridor das ordens exigidas, justificando que cumpria o seu dever, que não só obedecia às ordens, como também às leis. Sabemos que as regras morais mudam de uma época à outra de acordo com os interesses e pressões dos que as inventam. Qual a natureza de um discurso moral imposto por médicos, pensadores – os codificadores morais? H. Himmler era responsável pelos experimentos médicos sem o uso de anestésicos – tentava comprovar cientificamente a deficiência mental dos indesejados (judeus, homossexuais, comunistas).
Himmler, com a ajuda de J. Goebbels, desenvolve e divulga o etos intelectual de uma raça superior – a ariana. O nazismo exemplifica um grupo que se agarrou de forma obsessiva numa ideia insana – cria uma nova moralidade e executa o que julgava ser correto. A crueldade paranoica dos nazistas pode ser comparada com qualquer outro tipo de adesão a grupos (religião, partido), quando esses recusam questionamentos ou análises críticas. Toda ação sobre coerção, obrigação, não pode ser considerada moral. A virtude ética comporta a consciência da falibilidade humana. O discurso da ciência, ao inaugurar o apagamento da enunciação (processo), promove a autoridade dos enunciados (produto). O imperativo categórico Mate! Compre! Goze! elimina a possibilidade de reflexão ao se dirigir, de forma absoluta, ao sujeito. Bem sabemos que foi a exclusão da enunciação e a exploração dos enunciados que permitiu aos nazistas apoiarem-se na ciência racial.
O nazismo desconstrói a ideia da boa ciência e nos alerta para os perigos da má ciência – a que se apresenta de forma autoritária, não dá ouvidos ao sujeito e se julga infalível. O discurso da ciência subverte o discurso do mestre exercendo a autoridade não apenas nos fatos, mas condicionando seu poder num falso pressuposto. O poder, seja econômico ou político, geralmente utiliza-se de dispositivos perversos que produzem saberes. Insanidades com efeito de verdade. Como no filme A onda, somos influenciados por discursos descabidos que pregam o paraíso pela via do consumo. Fascinados pelas promessas de felicidade, trocamos o mérito pela fama. Num relativismo cego, aceitamos absurdos como a violência envolvendo jovens, os abusos e crimes cometidos pela internet (cyberbullying), a erotização precoce e a gravidez na adolescência. Somos covardes quando não reinventamos outras formas de nos defender – julgando relevante ensinar ao filho revidar agressões, a “não levar desaforo para casa”. Com nossa arrogância regamos a semente do nazismo, ao nos julgarmos perfeitos, sem furos.
O mal é o não engajamento dos pais na educação dos filhos. O que um filho espera dos pais é que eles se preparem para enfrentar os desafios de sua época. Qual amanhã? Os piores crimes foram cometidos em nome do bem, com as melhores intenções, por homens com forte senso de dever.
Inez Lemos
Um comentário:
Muito interessante. Ainda não assisti este filme, mas com certeza irei.
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