17 de nov. de 2009

A Europa que desperdiçou 1989

1989 foi o maior ano da história mundial desde 1945. Em política internacional, ele mudou tudo. Conduziu ao fim do comunismo na Europa, da União Soviética, da Guerra Fria e do curto século 20. Abriu as portas à unificação alemã, a uma União Europeia historicamente sem precedente, estendendo-se de Lisboa a Talin, à ampliação da Otan, a duas décadas de supremacia americana, à globalização e à ascensão da Ásia. A única coisa que ele não mudou foi a natureza humana. Em 1989, os europeus propuseram um novo modelo de revolução, não violenta, "de veludo", questionando o exemplo de violência de 1789 que durante dois séculos foi o que a maioria das pessoas achava que era uma revolução. Em vez de jacobinos e guilhotina, eles ofereceram às pessoas poder e negociações numa mesa redonda. Com a impressionante renúncia de Mikhail Gorbachev ao uso da força (um exemplo luminoso da importância do indivíduo na história), um império detentor de armas nucleares, que para muitos europeus parecera tão duradouro e sólido como os Alpes, não apenas porque possuía aquelas armas de destruição total, simplesmente desapareceu, silenciosa e repentinamente. Mas então, como se isso tudo fosse bom demais para ser verdade, 1989 trouxe também a fatwa do aiatolá Khomeini contra Salman Rushdie - o tiro de largada para outro prolongado conflito na Europa, iniciado antes mesmo que o último houvesse realmente terminado. Anos como esse só ocorrem uma ou duas vezes no curso de uma vida. 2001, o ano dos ataques terroristas do 11 de Setembro, foi outro ano importante, é claro, sobretudo porque alterou as prioridades dos Estados Unidos no mundo. Mas não provocou tantas mudanças quanto 1989. Como a Guerra Fria havia afetado até o menor dos Estados africanos, fazendo dele um potencial peão no grande jogo de xadrez entre Leste e Oeste, também seu fim afetou todos os países. E lugares como o Afeganistão foram esquecidos, negligenciados por Washington, já que não pesavam mais numa disputa global com a agora ex-União Soviética. Os mujahedin tinham feito seu trabalho e podiam partir. Mas um desses "guerreiros santos", chamado Osama bin Laden, tinha outras ideias. O epicentro de 1989 foi a Europa entre o Reno e os Urais, e foi ali que ela mais mudou. Nenhum vizinho da Polônia hoje o era em 1989. Alias, muitos Estados e algumas fronteiras da Europa Oriental são hoje mais novos que os da África. A vida de todo homem, mulher e criança mudou além de qualquer reconhecimento - e em nenhum lugar mais que na antiga República Democrática Alemã, cujo atestado de óbito foi escrito há 20 anos num dia 9 de novembro, com a derrubada do Muro de Berlim. Num plano mais próximo, temos as histórias dos jovens - checos, húngaros e alemães-orientais - nascidos em 1989, que estão se agarrando às chances de liberdade e desfrutando delas; e dos muitos, mais velhos e menos favorecidos, que, por virem passando por maus bocados desde então se tornaram raivosos e desiludidos. No extremo, temos a dança global das velhas e das novas superpotências. Potencialmente, elas agora são três: Estados Unidos, China e União Europeia (UE). Os EUA ainda são a única superpotência genuína, tridimensional. Quando os ex-presidentes Gorbachev e George H. W. Bush se reuniram com o ex-chanceler Helmut Kohl em Berlim, no mês passado, Bush pai prestou tributo a seu amigo "Mikhail". Ele podia se dar ao luxo de ser generoso: afinal, a América vencera. Mais precisamente, os EUA emergiram como vencedores graças, em parte, a suas próprias políticas, mas também ao trabalho de outros. Seria difícil, porém. dizer que os EUA tenham empregado muito bem suas duas décadas subsequentes de supremacia - principalmente sob Bush filho. O país viveu à larga, acumulando uma pilha de dívidas tanto em nível familiar como nacional. Não criou uma nova ordem internacional duradoura. E tem agora um presidente maravilhoso que deseja fazer isso, mas provavelmente já não dispõe dos meios. A China é o mais surpreendente dos vencedores. Vale lembrar que quando Gorbachev visitou Pequim no início do verão de 1989 teve de ser introduzido sorrateiramente, por uma entrada lateral, no complexo de Zhongnanhai dos líderes do Partido Comunista porque havia muitos manifestantes na Praça Tiananmen (da Paz Celestial). A China parecia à beira de algum tipo de revolução de veludo. Mas aí veio o massacre de 4 de junho na praça. Um calafrio percorreu a Eurásia, de Pequim a Berlim. China e Europa separaram-se dramaticamente. Traumatizados pelos protestos de Tiananmen e o colapso do comunismo na União Soviética e na Europa Oriental, os líderes do PC chinês aprenderam as lições de como evitar o destino de seus camaradas europeus. Agarrando as oportunidades econômicas oferecidas pela globalização, ela própria decisivamente catalisada pelo fim do comunismo europeu, os líderes chineses avançaram pela estrada na qual Deng Xiaoping (alguém da estatura de Gorbachev em termos de impacto na história) os lançara. O resultado: um híbrido que pode ser simplificadamente definido como capitalismo leninista - algo simplesmente inimaginável em 1989. E uma superpotência emergente com US$ 2 trilhões de reservas que agarrou os EUA numa chave de braço financeira. É verdade que a China é uma superpotência frágil, com muitas tensões e contradições internas e pouquíssima liberdade; mas ainda assim é uma formidável competidora com o capitalismo democrático liberal estilo ocidental. Bem mais formidável que o islamismo militante passadista - uma ameaça real, mas não um sério competidor ideológico. E depois estamos nós: a velha Europa, onde tudo começou. Num ensaio na New York Review of Books recentemente republicado no jornal The Guardian, sugeri que 1989 foi o melhor ano da história europeia. É uma pretensão ousada, e os leitores são convidados a apontar um ano melhor. Mas duas décadas depois, e em meus momentos mais sombrios, 1989 às vezes me parece o último e tardio florescimento de uma rosa muito velha. Evidentemente, alcançamos algumas grandes coisas desde então. Ampliamos a UE . Temos (ou pelo menos alguns de nós têm) uma moeda europeia única. Temos a maior economia do mundo. No papel, a Europa parece bem. Mas a realidade política é muito diferente. Esta não é a Europa de coração grande com a qual visionários como Vaclav Havel sonharam em 1989. É a Europa do outro Vaclav, Vaclav Klaus, assinando o Tratado de Lisboa com os dentes rangendo após arrancar pequenas concessões provincianas. É a Europa de David Cameron, que na defensiva estreiteza nacional de sua visão europeia, é realmente bastante representativo do europeu contemporâneo. (Churchill! Deveríeis estar vivo nesta hora: a Europa precisa de vós.) Mergulhado no narcisismo da diferença mínima, somente meio desperto para o mundo de gigantes que emergem a seu redor, nosso político médio da França, Alemanha ou Polônia pouco melhorou. Assim, depois de 20 anos, a questão com a qual nós europeus nos deparamos é esta: conseguiremos recapturar algo da ousadia estratégica e da imaginação histórica de 1989? Ou deixaremos que outros moldem o mundo enquanto nos acomodamos, como Hobbits, em nossos buracos nacionais e fingimos que não há gigantes caminhando sobre nossas cabeças? Timothy Garton Ash

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