Se alguém nos pedir uma lista das pessoas que mais marcaram o século XX, é certo que dela constará Sigmund Freud: não apenas como inventor da psicoterapia, mas como autor de descobertas que contribuíram com impacto inestimável para moldar a imagem que o homem ocidental tem de si mesmo.
Como suas ideias alcançaram tamanha divulgação? Além da originalidade e do poder libertador que encerram, graças à maneira como foram expressas. Freud era excelente escritor, capaz de se servir de uma vasta gama de procedimentos literários. Dedicou-se com afinco, também, ao "movimento psicanalítico", ou seja, à formação de discípulos – em que o estudo de seus escritos é essencial, já que constitui a base da prática clínica.
Nas primeiras décadas do século XX, o fato de esses textos estarem em alemão não era obstáculo. A maioria dos analistas vinha da Europa Central, e o alemão era então uma das principais línguas científicas do mundo. Naturalmente, o interesse crescente pela nova disciplina suscitou traduções para o inglês, o francês e o espanhol. Mas várias delas foram supervisionadas pelo próprio Freud, que era fluente nessas línguas. Apesar de algumas imprecisões conceituais e variações de terminologia, essas versões atingiram seu objetivo: oferecer uma visão geral da psicanálise e difundi-la na Europa e nas Américas. Uma coisa, porém, é contornar um punhado de incorreções.
Outra, muito diferente, é ter de se ver com um texto eivado de equívocos – como a primeira Edição Standard Brasileira da Imago, durante muito tempo a única tradução disponível no país. Voltar à fonte e oferecer um Freud o mais fiel possível ao original é o que se propõem duas novas traduções, cujos primeiros volumes chegam agora às livrarias – pela Companhia das Letras, a cargo de Paulo César de Souza, e pela L&PM, por Renato Zwick. Somando-se o trabalho em progresso, já faz alguns anos, de revisão da Standard, sob a direção de Luiz Alberto Hanns, o leitor brasileiro passa assim a dispor de três versões respeitáveis da obra de Freud. As dificuldades que vitimaram o texto de Freud no Brasil tiveram origem no tumulto do século passado.
O nazismo obrigou muitos analistas judeus a deixar a Europa Central; e o término da II Guerra, que coincidiu com a morte de Freud, fez o centro de gravidade do mundo analítico se deslocar para a Inglaterra e os Estados Unidos e, em menor medida, para a França e a Argentina. Tornou-se, então, urgente estabelecer uma versão dos escritos freudianos que servisse de referência para a comunidade analítica internacional. Essa foi a tarefa do inglês James Strachey, e resultou nos 24 volumes da Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, um monumento científico e literário cujo papel na preservação e difusão do pensamento do mestre dificilmente pode ser exagerado. A partir dela, Freud foi traduzido para o português; e, nas páginas da Edição Standard Brasileira, muitos brasileiros estudaram a psicanálise. Ocorre que essa tradução foi realizada com critérios pouco científicos. Há inúmeros erros no emprego do vocabulário técnico e na própria compreensão do inglês. Seus responsáveis tinham boa vontade, mas não talento literário.
Produziram um texto pesado e deselegante, antípoda ao estilo de Freud. Na década de 80, esses problemas começaram a ser percebidos, e a Editora Imago buscou remediá-los, emendando as passagens mais problemáticas. Logo, porém, tornou-se patente que o melhor era substituir o texto por uma tradução correta a partir do original, e o analista e professor de alemão Luiz Alberto Hanns foi convidado para coordenar o empreendimento. Desde 2006, sua equipe já publicou três volumes, e no momento prepara um quarto. Nos anos 90, o germanista Paulo César de Souza, que, com a analista paulistana Marilene Carone, fora dos primeiros a levantar objeções à Standard Brasileira, traduziu alguns textos que circularam intramuros, em publicações da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Isso porque só em 2009 a obra de Freud cairia em domínio público: até então, os direitos autorais pertenciam à Imago.
Como esse obstáculo deixou de existir, a Companhia das Letras e a L&PM podem, agora, lançar suas versões. São projetos diferentes, que, no ver deste autor, se complementam. A edição da L&PM, em formato de bolso, visa a apresentar Freud a um público mais amplo. É bem cuidada, trazendo prefácios específicos para cada volume e um útil "ensaio bibliográfico" assinado pelos psicanalistas Paulo Endo e Edson Sousa. Já a revisão da Standard e a edição da Companhia têm escopo diverso. Seu alvo é primariamente a comunidade profissional, e tanto Luiz Alberto Hanns quanto Paulo César de Souza dedicaram muito tempo e reflexão à tarefa específica de traduzir Freud.
Há décadas, estudam-se em nosso país os textos freudianos. Foi se decantando um vocabulário técnico, que varia segundo as escolas psicanalíticas e cujo emprego denota opções teóricas e clínicas dentro da psicanálise contemporânea. Ambos os tradutores têm consciência desses fatos, e não pretendem substituir o recurso ao original, indispensável a partir de certo patamar de estudo. Suas escolhas são explicitadas em textos programáticos – as de Hanns na Introdução ao Volume 1 da nova edição da Imago, que cobre escritos dos anos 1911-1915, e as de Souza na sua tese de doutorado, As Palavras de Freud, que a Companhia das Letras publica simultaneamente aos três tomos que abrem sua coleção (o 10, o 12 e o 14, contendo textos que vão de 1911 a 1920). As decisões opostas quanto à melhor versão de alguns conceitos importantes, como Trieb e Verdrängung – "pulsão" e "recalque" para Hanns, "instinto" e "repressão" para Souza –, suscitarão discussões, e não é difícil prever que virão a ter lugar de destaque nos colóquios e publicações dos psicanalistas.
Mas os tradutores não pretendem impor suas opções: o louvável é que ambos as justificam com razões de peso, levando em conta os sentidos dos termos na língua alemã, o uso que Freud faz deles (nem sempre uniforme, diga-se), as diferenças semânticas entre os vocábulos germânicos e portugueses, a fluência das frases em que comparecem e outros aspectos necessários a uma tradução exata e elegante. A principal diferença é que Souza trabalha sozinho, tendo como foco "a fidelidade ao original, sem interpretações ou interferências de comentaristas ou teóricos posteriores da psicanálise". Já Hanns dá grande importância ao estudo passado e presente de Freud. Isso o leva a ponderar as implicações de substituir termos de uso corrente e insistir em mudança apenas quando as expressões consagradas podem deturpar o pensamento de Freud (por exemplo, traduz Versagung por "impedimento", já que "frustração", para o falante do português, sugere decepção, que tem pouca ou nenhuma relevância na concepção freudiana desse fato psíquico).
Outra decorrência dessas diferenças aparece nas notas explicativas: as de Souza são pouco numerosas, até porque em sua tese ele examina com vagar os problemas em pauta (seu livro, aliás, se tornará indispensável para quem quiser estudar Freud a fundo). Já a edição de Hanns traz um imponente aparelho crítico: os comentários de Strachey, abundantes notas do editor e uma novidade excelente – pequenos parágrafos de analistas brasileiros sobre alguns termos ou passagens, mostrando como eles foram compreendidos pelas diversas orientações pós-freudianas. Fundamental, porém, é o que as três edições vertidas diretamente do alemão têm em comum: o fato de oferecerem ao público brasileiro algo precioso, e de que ele estava privado – o deleite de ler, em português, o que Freud realmente escreveu.
Renato Mezan
Como suas ideias alcançaram tamanha divulgação? Além da originalidade e do poder libertador que encerram, graças à maneira como foram expressas. Freud era excelente escritor, capaz de se servir de uma vasta gama de procedimentos literários. Dedicou-se com afinco, também, ao "movimento psicanalítico", ou seja, à formação de discípulos – em que o estudo de seus escritos é essencial, já que constitui a base da prática clínica.
Nas primeiras décadas do século XX, o fato de esses textos estarem em alemão não era obstáculo. A maioria dos analistas vinha da Europa Central, e o alemão era então uma das principais línguas científicas do mundo. Naturalmente, o interesse crescente pela nova disciplina suscitou traduções para o inglês, o francês e o espanhol. Mas várias delas foram supervisionadas pelo próprio Freud, que era fluente nessas línguas. Apesar de algumas imprecisões conceituais e variações de terminologia, essas versões atingiram seu objetivo: oferecer uma visão geral da psicanálise e difundi-la na Europa e nas Américas. Uma coisa, porém, é contornar um punhado de incorreções.
Outra, muito diferente, é ter de se ver com um texto eivado de equívocos – como a primeira Edição Standard Brasileira da Imago, durante muito tempo a única tradução disponível no país. Voltar à fonte e oferecer um Freud o mais fiel possível ao original é o que se propõem duas novas traduções, cujos primeiros volumes chegam agora às livrarias – pela Companhia das Letras, a cargo de Paulo César de Souza, e pela L&PM, por Renato Zwick. Somando-se o trabalho em progresso, já faz alguns anos, de revisão da Standard, sob a direção de Luiz Alberto Hanns, o leitor brasileiro passa assim a dispor de três versões respeitáveis da obra de Freud. As dificuldades que vitimaram o texto de Freud no Brasil tiveram origem no tumulto do século passado.
O nazismo obrigou muitos analistas judeus a deixar a Europa Central; e o término da II Guerra, que coincidiu com a morte de Freud, fez o centro de gravidade do mundo analítico se deslocar para a Inglaterra e os Estados Unidos e, em menor medida, para a França e a Argentina. Tornou-se, então, urgente estabelecer uma versão dos escritos freudianos que servisse de referência para a comunidade analítica internacional. Essa foi a tarefa do inglês James Strachey, e resultou nos 24 volumes da Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, um monumento científico e literário cujo papel na preservação e difusão do pensamento do mestre dificilmente pode ser exagerado. A partir dela, Freud foi traduzido para o português; e, nas páginas da Edição Standard Brasileira, muitos brasileiros estudaram a psicanálise. Ocorre que essa tradução foi realizada com critérios pouco científicos. Há inúmeros erros no emprego do vocabulário técnico e na própria compreensão do inglês. Seus responsáveis tinham boa vontade, mas não talento literário.
Produziram um texto pesado e deselegante, antípoda ao estilo de Freud. Na década de 80, esses problemas começaram a ser percebidos, e a Editora Imago buscou remediá-los, emendando as passagens mais problemáticas. Logo, porém, tornou-se patente que o melhor era substituir o texto por uma tradução correta a partir do original, e o analista e professor de alemão Luiz Alberto Hanns foi convidado para coordenar o empreendimento. Desde 2006, sua equipe já publicou três volumes, e no momento prepara um quarto. Nos anos 90, o germanista Paulo César de Souza, que, com a analista paulistana Marilene Carone, fora dos primeiros a levantar objeções à Standard Brasileira, traduziu alguns textos que circularam intramuros, em publicações da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Isso porque só em 2009 a obra de Freud cairia em domínio público: até então, os direitos autorais pertenciam à Imago.
Como esse obstáculo deixou de existir, a Companhia das Letras e a L&PM podem, agora, lançar suas versões. São projetos diferentes, que, no ver deste autor, se complementam. A edição da L&PM, em formato de bolso, visa a apresentar Freud a um público mais amplo. É bem cuidada, trazendo prefácios específicos para cada volume e um útil "ensaio bibliográfico" assinado pelos psicanalistas Paulo Endo e Edson Sousa. Já a revisão da Standard e a edição da Companhia têm escopo diverso. Seu alvo é primariamente a comunidade profissional, e tanto Luiz Alberto Hanns quanto Paulo César de Souza dedicaram muito tempo e reflexão à tarefa específica de traduzir Freud.
Há décadas, estudam-se em nosso país os textos freudianos. Foi se decantando um vocabulário técnico, que varia segundo as escolas psicanalíticas e cujo emprego denota opções teóricas e clínicas dentro da psicanálise contemporânea. Ambos os tradutores têm consciência desses fatos, e não pretendem substituir o recurso ao original, indispensável a partir de certo patamar de estudo. Suas escolhas são explicitadas em textos programáticos – as de Hanns na Introdução ao Volume 1 da nova edição da Imago, que cobre escritos dos anos 1911-1915, e as de Souza na sua tese de doutorado, As Palavras de Freud, que a Companhia das Letras publica simultaneamente aos três tomos que abrem sua coleção (o 10, o 12 e o 14, contendo textos que vão de 1911 a 1920). As decisões opostas quanto à melhor versão de alguns conceitos importantes, como Trieb e Verdrängung – "pulsão" e "recalque" para Hanns, "instinto" e "repressão" para Souza –, suscitarão discussões, e não é difícil prever que virão a ter lugar de destaque nos colóquios e publicações dos psicanalistas.
Mas os tradutores não pretendem impor suas opções: o louvável é que ambos as justificam com razões de peso, levando em conta os sentidos dos termos na língua alemã, o uso que Freud faz deles (nem sempre uniforme, diga-se), as diferenças semânticas entre os vocábulos germânicos e portugueses, a fluência das frases em que comparecem e outros aspectos necessários a uma tradução exata e elegante. A principal diferença é que Souza trabalha sozinho, tendo como foco "a fidelidade ao original, sem interpretações ou interferências de comentaristas ou teóricos posteriores da psicanálise". Já Hanns dá grande importância ao estudo passado e presente de Freud. Isso o leva a ponderar as implicações de substituir termos de uso corrente e insistir em mudança apenas quando as expressões consagradas podem deturpar o pensamento de Freud (por exemplo, traduz Versagung por "impedimento", já que "frustração", para o falante do português, sugere decepção, que tem pouca ou nenhuma relevância na concepção freudiana desse fato psíquico).
Outra decorrência dessas diferenças aparece nas notas explicativas: as de Souza são pouco numerosas, até porque em sua tese ele examina com vagar os problemas em pauta (seu livro, aliás, se tornará indispensável para quem quiser estudar Freud a fundo). Já a edição de Hanns traz um imponente aparelho crítico: os comentários de Strachey, abundantes notas do editor e uma novidade excelente – pequenos parágrafos de analistas brasileiros sobre alguns termos ou passagens, mostrando como eles foram compreendidos pelas diversas orientações pós-freudianas. Fundamental, porém, é o que as três edições vertidas diretamente do alemão têm em comum: o fato de oferecerem ao público brasileiro algo precioso, e de que ele estava privado – o deleite de ler, em português, o que Freud realmente escreveu.
Renato Mezan
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