Nos países desenvolvidos, a vaga feminista dos anos 70 foi realizada por mulheres brancas, de classe média e de nível superior. A agenda do movimento foi constituída a partir das necessidades e experiências das mesmas. Nela, a palavra submissão aparecia repetidas vezes.
A luta era "contra". Contra a submissão imposta por maridos, patrões, amantes, pais e irmãos. Referido à obediência e sujeição, o vocábulo se popularizou no século 17. Antes, contudo, o tema já tinha sido pensado.
Entre 1530 e 1563, o francês Etienne de La Boetie escreveu uma obra, o Discurso da Servidão Voluntária, em que analisava uma questão muito avançada para a época: por que se obedece a um mestre, que, por vezes, é um tirano? Muitas respostas: o hábito que fazia as pessoas acreditarem que obedecer é natural; a admiração pelo poder, a esperteza do mestre em distribuir favores, sossegando os descontentes.
A obra foi fundamental para demonstrar que as pessoas se submetem porque querem. E muitas vezes ainda tiram vantagens da submissão. O tema foi retomado ao longo dos séculos. Até Freud o analisou em livro, publicado em 1921: A Psicologia das Massas. Os estudos sobre a submissão datam de uma época em que a palavra "autoridade" tinha algum sentido. O poder de pais, maridos e instituições era forte e sua autoridade, legítima.
Quem contestava o da Igreja ou o das Forças Armadas? Mas e hoje? Há décadas, sociólogos e psicólogos concordam que assistimos ao declínio da autoridade. Na família, na empresa ou na escola, a democratização roeu as bases das antigas hierarquias. Mas e se tudo isso não fosse uma ilusão? Se por trás das aparências de liberdades conquistadas, muitas delas graças às feministas, novas formas de servidão tenham se imposto?
Não vemos mulheres "liberadas" se submeterem a regimes drásticos para se conformarem a um único modelo físico: o de tamanho 38? Não as vemos se infligir sessões de musculação nas academias, empanturrando-se de todos os tipos de anabolizantes? Não as vemos se desfigurarem com as sucessivas cirurgias plásticas, negando-se a envelhecer com serenidade? Se as mulheres orientais ficam trancadas num espaço determinado, o harém, as ocidentais têm outra prisão: a imagem. E são açoitadas para caber nela: eternamente jovens, leves e saudáveis. Uma armadura que em tempos de globalização irradia-se por todo o planeta. Tamanho grande? Só no fundo da loja.
A energia que as mulheres consagram aos seus corpos para não deixá-los enrugar e engordar é impressionante. E tudo para caber em um outro cárcere: aquele do olhar masculino. "Os homens olham as mulheres. E as mulheres se olham ser olhadas", diagnosticou o sociólogo John Berger. E a feminista Naomi Wolf cravou sem dó: "a fixação sobre a magreza feminina não é expressão de beleza da mulher, mas de obediência feminina." Se ainda existem mulheres engajadas em lutas, vale lembrar essa, contra as novas formas de submissão. "Contra" o servilismo moldado pela mídia, pela televisão, pelos outdoors.
E quem sabe o Dia Internacional da Mulher ajude a pensar esse trágico erro: o de que só o corpo pode falar a linguagem da sedução?
Mary Del Priore
A luta era "contra". Contra a submissão imposta por maridos, patrões, amantes, pais e irmãos. Referido à obediência e sujeição, o vocábulo se popularizou no século 17. Antes, contudo, o tema já tinha sido pensado.
Entre 1530 e 1563, o francês Etienne de La Boetie escreveu uma obra, o Discurso da Servidão Voluntária, em que analisava uma questão muito avançada para a época: por que se obedece a um mestre, que, por vezes, é um tirano? Muitas respostas: o hábito que fazia as pessoas acreditarem que obedecer é natural; a admiração pelo poder, a esperteza do mestre em distribuir favores, sossegando os descontentes.
A obra foi fundamental para demonstrar que as pessoas se submetem porque querem. E muitas vezes ainda tiram vantagens da submissão. O tema foi retomado ao longo dos séculos. Até Freud o analisou em livro, publicado em 1921: A Psicologia das Massas. Os estudos sobre a submissão datam de uma época em que a palavra "autoridade" tinha algum sentido. O poder de pais, maridos e instituições era forte e sua autoridade, legítima.
Quem contestava o da Igreja ou o das Forças Armadas? Mas e hoje? Há décadas, sociólogos e psicólogos concordam que assistimos ao declínio da autoridade. Na família, na empresa ou na escola, a democratização roeu as bases das antigas hierarquias. Mas e se tudo isso não fosse uma ilusão? Se por trás das aparências de liberdades conquistadas, muitas delas graças às feministas, novas formas de servidão tenham se imposto?
Não vemos mulheres "liberadas" se submeterem a regimes drásticos para se conformarem a um único modelo físico: o de tamanho 38? Não as vemos se infligir sessões de musculação nas academias, empanturrando-se de todos os tipos de anabolizantes? Não as vemos se desfigurarem com as sucessivas cirurgias plásticas, negando-se a envelhecer com serenidade? Se as mulheres orientais ficam trancadas num espaço determinado, o harém, as ocidentais têm outra prisão: a imagem. E são açoitadas para caber nela: eternamente jovens, leves e saudáveis. Uma armadura que em tempos de globalização irradia-se por todo o planeta. Tamanho grande? Só no fundo da loja.
A energia que as mulheres consagram aos seus corpos para não deixá-los enrugar e engordar é impressionante. E tudo para caber em um outro cárcere: aquele do olhar masculino. "Os homens olham as mulheres. E as mulheres se olham ser olhadas", diagnosticou o sociólogo John Berger. E a feminista Naomi Wolf cravou sem dó: "a fixação sobre a magreza feminina não é expressão de beleza da mulher, mas de obediência feminina." Se ainda existem mulheres engajadas em lutas, vale lembrar essa, contra as novas formas de submissão. "Contra" o servilismo moldado pela mídia, pela televisão, pelos outdoors.
E quem sabe o Dia Internacional da Mulher ajude a pensar esse trágico erro: o de que só o corpo pode falar a linguagem da sedução?
Mary Del Priore
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