26 de jun. de 2010

O Que é Ser Contemporâneo?
Alguns pontos da visão de Giorgio Agamben
O poeta – o contemporâneo – deve manter o olhar fixo em seu tempo. Mas que vê quem vê seu tempo, o sorriso demente de seu século? Contemporâneo é aquele que mantém o olhar fixo em seu tempo, para perceber não as suas luzes, mas sim as suas sombras. Todos os tempos são, para quem experimenta sua contemporaneidade, escuros. Contemporâneo é quem sabe ver essa sombra, quem está em condições de escrever umedecendo a pena nas trevas do presente. Mas o que significa "ver a escuridão", "perceber a sombra"?
Uma primeira resposta nos é sugerida pela neurofisiologia da visão. O que acontece quando nos encontramos em um ambiente sem luz, ou quando fechamos os olhos? O que é a sombra que vemos nesse momento? Os neurofisiologistas dizem-nos que a ausência de luz desinibe uma série de células periféricas da retina, chamadas, precisamente, de off-cells, que entram em atividade e produzem essa espécie particular de visão que chamamos de sombra. A sombra não é, portanto, um conceito privativo, a simples ausência de luz, algo como uma não visão, mas sim o resultado da atividade das off-cells, um produto da nossa retina. Isso significa (...) que perceber essa sombra não é uma forma de inércia ou de passividade, mas sim de algo que implica uma atividade e uma habilidade particulares, que, no nosso caso, equivalem a neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir sua escuridão, sua sombra especial que não é, de todos os modos, separável dessas luzes.
Pode se chamar de contemporâneo só aquele que não se deixa cegar pelas luzes do século e que é capaz de distinguir nelas a parte da sombra, sua íntima escuridão. Por que o fato de poder perceber as trevas que provêm da época deveria nos interessar? Por acaso, a sombra não é uma experiência anônima e, por definição, impenetrável, algo que não está dirigido a nós e não pode, portanto, nos incumbir? Pelo contrário, contemporâneo é aquele que percebe a sombra de seu tempo como algo que lhe incumbe e que não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que qualquer luz, se refere direta e singularmente a ele. Quem recebe em pleno rosto o feixe de trevas que provém de seu tempo.
A contemporaneidade se inscreve no presente marcando-o sobretudo como arcaico, e só quem percebe no mais moderno e recente os indícios e as signaturas do arcaico pode ser seu contemporâneo. Arcaico significa: próximo do "arché", ou seja, da origem. Mas a origem não está situada só em um passado cronológico: é contemporâneo ao devir histórico e não cessa de funcionar nele, como o embrião continua atuando nos tecidos do organismo maduro, e o bebê, na vida psíquica do adulto. A distância e, ao mesmo tempo, a proximidade que definem a contemporaneidade têm seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum ponto bate com tanta força como no presente.
Os historiadores da literatura e da arte sabem que, entre o arcaico e o moderno, há um encontro secreto, e não tanto por causa do fato de que as formas mais arcaicas parecem exercer no presente um fascínio particular, mas sim porque a chave do moderno está oculta no imemorial e no pré-histórico. Assim, o mundo antigo, em seu final, se volta, para se reencontar, para as origens: a vanguarda, que se extraviou no tempo, segue o primitivo e o arcaico. Nesse sentido, justamente, pode-se dizer que a via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia. Que não retrocede, porém, a um passado remoto, mas sim ao que, no presente, não podemos viver de nenhuma forma e, ao permanecer no vivido, é incessantemente reabsorvido para a origem, sem nunca poder alcançá-lo. Porque o presente não é outra coisa que a parte de não-vivido em cada vivido, e o que impede o acesso ao presente é justamente a massa do que, por alguma razão (seu caráter traumático, sua proximidade excessiva) não conseguimos viver nele

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