28 de set. de 2010

Inimigos - Gil Vicente

Segundo Freud, líderes que Gil Vicente ‘assassina’ ocupam lugar do pai que seduz, rivaliza e oprime

É inequívoco o teor político de Inimigos, trabalho de Gil Vicente agora exposto na Bienal. São "autorretratos" do artista matando Lula, FHC, rainha Elizabeth, papa Bento XVI, Kofi Annan, Eduardo Campos, George Bush, Ariel Sharon, Jarbas Vasconcelos. 

Essa dimensão polêmica fica agora potencializada por coincidir sua exposição com o momento pré-eleitoral. De fato, essas circunstâncias dão mais força a algumas imagens, como a de Lula sendo garroteado pelo artista e prestes a ser por ele degolado. Não poderia ser mais gritante o contraste que ela estabelece com a tão apregoada popularidade do presidente, que lhe garante 80% de aprovação dos eleitores. Poderíamos ver esse contraste como um exemplo da diferença entre o funcionamento psíquico próprio das massas em oposição à forma de pensar do sujeito fora das massas. 

A psicologia das massas se caracteriza por sua identificação com um líder que ocupa o lugar de figuras paternas idealizadas. Isso faz com que as massas adotem uma postura infantilizada frente ao líder, que é visto como um pai ou uma mãe que as protege e conduz, fantasia inconsciente muitas vezes deliberadamente manipulada pelo poder. Já o sujeito fora das massas - e ninguém mais que o artista para representar essa condição - mantém o espírito crítico frente ao líder e, apesar de não estar isento de nele também fazer projeções, pode vê-lo com mais objetividade. Para ele, tais "pais" ou "mães" são vistos como inimigos a serem eliminados. Ou seja, para o artista, a sociedade não deve ser regida por "pais" e "mães" onipotentes e sim por cidadãos como ele, a quem delega temporariamente o poder e de quem exigirá uma prestação de contas no seu devido tempo. Em nosso caso brasileiro, à primeira vista podemos pensar que a posição infantil, dependente e acrítica das massas se deve à sua indiscutível ignorância. 

Tal ideia logo se mostra insustentável ao lembramos que essa mesma atitude foi tomada pelas massas letradas e instruídas da Europa frente a Mussolini e Hitler, no século passado. A popularidade do líder depende dos elementos psíquicos inconscientes já mencionados, reforçados por fatores advindos da realidade sócio-econômico-cultural. Mas a dimensão política de Inimigos não pode ser confundida com uma estreita atitude panfletária ou partidária. O variado espectro ideológico dos líderes "assassinados" pelo artista mostra que o que está em jogo é algo maior, é a revolta crítica contra o poder instituído e seus infindáveis desmandos, é o cansaço e a saudável intolerância com os embustes e fraudes que se escondem nas pompas e circunstâncias que envolvem os mandatários. 

A identificação daqueles que estão no exercício do poder com figuras paternas faz com que a observação de Inimigos possa evocar nos espectadores a fantasia do assassinato do pai. Tal fantasia ocupa lugar central na teoria psicanalítica, sendo detalhadamente explorada nas elaborações sobre o complexo de Édipo (processo que estrutura o sujeito) e em Totem e Tabu (mito antropológico de larga envergadura criado por Freud para explicar a gênese da cultura). De certa forma, podemos dizer que, nesses dois momentos, o assassinato do pai tem conotações diferentes. No complexo de Édipo, o pai é o rival frente ao objeto de desejo (mãe) e agente da interdição do incesto, o que possibilita o crescimento do filho, além de ser para ele um modelo identificatório. 

Em Totem e Tabu, o pai da horda primitiva é a encarnação da onipotência narcísica que impede o desenvolvimento dos filhos, vistos por ele como rivais a serem eliminados. Se o assassinato do pai teria efeitos catastróficos no complexo de Édipo, em Totem e Tabu ele é a condição necessária para o aparecimento da lei, da religião, da moral e da organização social, pois ao assassinato se sucede a culpa dos filhos, o que leva à internalização das leis do pai morto. 

 Se temos esse modelo freudiano em mente, a obra de Gil proporcionaria ao espectador uma dupla gratificação. Satisfaria seus desejos edipianos de matar o pai enquanto rival frente a mãe, ao mesmo tempo que remete ao assassinato do pai primevo, o tirano possessivo e violento que impõe seu desejo sem restrições, pois a lei só será instaurada após (e em função de) sua morte. Diríamos que os poderosos que Gil Vicente "assassina" não são pais edipianos, portadores e mantenedores da lei. Os políticos estão bem mais próximos dos pais da horda primitiva, onipotentes e vorazes usurpadores que se colocam num espaço acima da lei e veem o poder como a oportunidade para dar vazão ao narcisismo mais predatório. Sérgio Telles - Psicanalista Jornal O Estado

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