Psicanalista que cuidou de frei Tito analisa os efeitos psicológicos da tortura que levou ao suicídio o religioso brasileiro na França, depois de sevícias sofridas nos cárceres da ditadura militar brasileira
Pensava que havíamos dito tudo o que sabíamos sobre Tito de Alencar, quando, logo depois de sua trágica morte, nós assumimos uma série de encontros e de trabalhos para – aqui me falta a palavra adequada: honrar, salvar, fazer justiça? – sua memória.
Nós: somos os frades dominicanos que o acompanharam de perto nos últimos meses de sua vida, tendo por nomes: Roland Ducret, Xavier Plassat e François Génuyt – e eu, a quem haviam confiado o tratamento do seu estado mental, doído e inquietante. Nós organizamos um seminário no convento de La Tourette, interrogamos a todos aqueles que o tinham conhecido depois do seu exílio na França; participamos de um programa de TV.
Escrevi um artigo, "Um homem torturado, Tito de Alencar”. Todos esses eventos se concentravam naquilo que a dor de Tito testemunhava de forma até ensurdecedora: experiência sem nome, sem rosto humano, experiência indescritível e inimaginável da tortura.
Lembro que na década de 1970, na França, continuávamos marcados pelo que o Exército francês, com o apoio de alguns políticos, tinha cometido na Argélia, clandestina e extensivamente. Esse pano de fundo da história nacional explica a sensibilidade, e também a insensibilidade, em que o testemunho de Tito foi recebido. Digo isso porque a emergência que nos instou a divulgar o testemunho de Tito não foi estranha à reserva, até mesmo à hostilidade que essa situação despertou ao nosso redor. A maioria dos meus colegas no hospital, por exemplo, achava que não havia razão para tratar “o caso Tito" a não ser como um caso psiquiátrico comum.
Mas nesta área aberta pela tortura, pela barbárie, pela violência cega que os homens praticam uns contra os outros, até contra si mesmos, nada nunca é dito definitivamente; talvez seja melhor dizer: nada nunca é dito, tão irrisório se parece o "dizer", sempre atrasado em relação ao fato que enuncia, tão fútil a palavra face à violência do gesto assassino. Confrontados com o implacável sentimento de impotência ao qual nos expôs o suicídio de Tito – esse enforcamento cujo poderoso peso simbólico é manifestado no filme e que não teve lugar na bela floresta contígua ao convento, mas sim no ambiente sórdido de um álamo adjacente ao lixão de uma zona industrial deserta e miserável –, frente a essa impotência, portanto, já que pela morte Tito havia-se furtado a nós exatamente como não conseguiu fazer frente aos seus algozes, me soa agora estranho que temos recorrido a esses discursos cuja impotência agora parece tão óbvia e, de pronto, nos constrange.
Talvez tenha nos ajudado a enfrentar este desafio a ideia de que a impotência do discurso não significa, ipso facto, um discurso da impotência, que se há um lugar onde o destino pode ser contrariado, onde o curso das coisas pode ser revertido, esse lugar é o da palavra. Pois, quando a palavra é denegada, outras vias se abrem para a expressão da verdade e da dor. Nos cadernos de Tito, foi encontrada essa sentença destinada a denegar o segredo onde seus algozes o mantinham preso: "Então as pedras gritarão!".
O que nos mostra a história do "pós-Tito" é que é o evento do qual foi o personagem principal, ou o símbolo, vem ressurgindo periodicamente na consciência coletiva. Perdi a conta das vezes em que fui solicitado para uma palestra, um artigo ou a tradução de um artigo antigo. Não tenho mantido registro de tais pedidos, mas parece que obedeciam a um ritmo particular: a cada dois ou três anos, como se a sua memória assombrasse as mentes à maneira de um fantasma em um castelo assombrado, ou como se, a esse respeito, algo tivesse que ser falado. Volto à questão do discurso da tortura, do discurso sobre a tortura: este não seria apenas produto da subjetividade do locutor, de uma vontade individual, mas lido profundamente a partir da relação da coisa em si com o aparelho da linguagem.
Sabemos que o que torna possível a tortura é a abolição prévia de qualquer intercâmbio, qualquer linguagem entre o torturador e sua vítima. O torturador não escuta a sua vítima, ele a interpreta; ele não fala para ela, ele a insulta; ele a faz falar, a faz confessar in fine (e devemos absolutamente guardar isso em nossa mente): que não é seu semelhante, que não pertence à mesma humanidade. Portanto, esta palavra que para nós é sagrada, porque é o próprio fundamento da comunidade dos homens, da humanização, eis que, nas circunstâncias que permitem a tortura, ela passa a ser desviada para um fim radicalmente oposto: a segregação, a exclusão, o banimento, a desumanização.
As sevícias físicas de que o torturador lança mão, os meios de que dispõe para fazê-lo remetem a um leque amplo e em si monstruoso. Batismo de sangue, filme de Helvécio Ratton, os detalha com precisão. Eles podem causar a morte da vítima. Esta também pode resistir. E Tito resistiu: isso diz muito de sua força de caráter e sua determinação de viver. O que a tortura emprega de meios físicos, de modo algum pode quebrar um sujeito.
Queria chamar a atenção para o fato de que, além dos meios físicos, a tortura lança mão de uma arma terrível da qual os torturadores costumam usar de maneira geralmente empírica, até sem saber, mas que, no caso de Tito, tornou-se preponderante, foi içada à altura de método e quase que foi objeto de teoria: "Nós vamos te quebrar por dentro", disse-lhe o delegado Fleury. E foi para escapar dessa ameaça que Tito tentou cometer suicídio na prisão. Esta arma é como o umbigo do arsenal do torturador, esta arma é o seguinte: destituir a palavra da sua função simbólica, reduzindo-a à categoria de um ato e um ato de morte.
Durante as sevícias envolvendo um simulacro de comunhão, colocavam na boca de Tito um fio elétrico provocando choques. A essa violência física "pura" eram acrescentadas aquelas palavras que, mais que insultos, eram destinadas a confundir sua identidade no mais íntimo e mais precioso: "Você é um padre homossexual", “você não é um sacerdote, já que é comunista". Formuladas neste contexto de degradação física, as palavras tornam-se golpes que abalam o edifício sempre precário da pessoa e “despersonalizam" a vítima.
Até a hora de sua morte, durante todos os anos do exílio, nunca mais se calou a voz do delegado Fleury na cabeça de Tito; em tudo ela o mandava: ir para casa, sair, calar-se, falar, nenhum dos seus gestos escapou mais desse controle. O torturador tinha se imiscuído em sua vítima, fazia um corpo só com ela, em uma fusão que não tinha nada de aliança, mas era uma absoluta subjugação. Que a vítima possa se tornar o dobro do torturador, sua sombra, isto é a coisa mais fantástica, a mais insuportável, e ninguém em seu redor tinha como apreciar tamanha metamorfose. Uma cena do filme mostra o prior do convento repreendendo Tito por seu comportamento.
Esta imagem me tocou: ela é verdadeira. Não só em relação a esse homem, uma pessoa que eu conheci e que era toda gentileza e perspicácia, mas em relação a todos nós, inclusive eu. Levei anos – e muitos retornos sobre esta experiência – para que o saber teórico que hoje apresento aqui e que começara a construir fosse impor-se a mim em profundidade. O conhecimento dos efeitos da tortura encontra no pesquisador, e mais ainda entre o seu público, resistências violentas. Por isso mesmo esse trabalho deve ser regularmente retomado.
Mas o que me tocou mais ainda é que, poucos anos antes, esse prior havia militado a favor da independência argelina e havia, ele mesmo, experimentado a prova da tortura. Não estou certo ao falar em "experiência" da tortura. Parece até que esse padre não tenha mantido memória daquilo que ele mesmo havia cruzado. O que está acontecendo no campo do desumano não deixa por trás nenhum conhecimento, não é objeto para nenhuma experiência. Só ficam marcas negativas que desertificam o espírito.
Jean-Claude Rolland
Um comentário:
maravilhoso texto. Li e me vi andando, muito jovem e sonhadora, em Ribeirão preto, na época das torturas... São coisas que me fazem pensar sempre....
Postar um comentário