19 de mar. de 2008

Um caso de Jung

Paciente e depois amante de Jung, a russa Sabina Spielrein tornou-se teórica brilhante da psicanálise e elaborou a formulação pioneira da pulsão de morte Em 23 de outubro de 1906, Jung escreveu a Freud: "Estou aplicando atualmente o seu método ao tratamento de uma histeria. É um caso difícil: uma estudante russa de 20 anos, doente há seis anos... Primeiro trauma por volta dos 3, 4 anos...". Na carta, pedia o parecer de Freud sobre um dos sintomas: um estranho ritual "auto-erótico" ao evacuar. Freud respondeu que o "trauma aos 4 anos teria reavivado traços de memória do primeiro ou segundo ano..." e recomendou seus escritos sobre auto-erotismo anal. Jung manteve Freud informado durante o tratamento, sem nomear a paciente e, sobretudo, sem revelar que a análise tinha evoluído para um relacionamento amoroso. Ele tinha 30 anos; ela, 20. Graças ao tratamento, ou à relação amorosa, a paciente, Sabina Spielrein, curou-se, terminou o curso de medicina, e em 1911 defendeu uma tese brilhante, "O conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia (demência precoce)", em que analisa uma paciente sua, antes tratada por Jung e, como ela, apaixonada por ele. Uma experiência clínica única: a médica e a paciente, ambas cativadas pelo amor por Jung; uma, apenas liberta de uma psicose, a escutar outra em pleno transtorno psicótico. Uma curiosa forma de auto-análise. O texto de Sabina, lapidar para a teoria psicanalítica, conclui: "O inconsciente libera o presente no passado... o futuro individual torna-se um passado geral filogenético e, ao mesmo tempo, este último assume para o indivíduo o valor do futuro. Assim, vemos o inconsciente como algo que existe fora do tempo ou que é, ao mesmo tempo, presente, passado e futuro" (S. Spielrein, em A. Carotenuto e C. Trombetta. Diario di una segretta simmetria, Sabina Spielrein tra Jung e Freud. Astrolabio-Ubaldini, 1980). Mas a obra-prima de Sabina é de 1912, A destruição como causa do nascimento, que traz a formulação pioneira do conceito de pulsão (ou instinto) de morte: o medo, a ansiedade ou as vivências defensivas, que acompanham o instinto de procriação resultam de "sensações que correspondem à componente destrutiva do instinto sexual". Para ela, os casos de auto-erotismo, e mesmo "o auto-erotismo psíquico" (que ela enxerga em Nietzsche), mostram a face destrutiva do impulso sexual. O amor pela própria imagem, transformada no sexo oposto, leva à autodestruição no seu próprio sexo. "Por isso, nos casos de isolamento auto-erótico... achamos tão freqüentemente a componente homossexual".Em março de 1909, Jung confessara a Freud: "... uma paciente, que há alguns anos livrei, com extrema dedicação, de uma gravíssima neurose, desiludiu minha confiança e minha amizade no modo mais ofensivo que se possa imaginar. Provocou um terrível escândalo unicamente porque renunciei ao prazer de dar-lhe um filho" (S. Freud e K.G. Jung, Correspondance, t. I, 1906-1909, Gallimard, 1975). Teria sido essa renúncia uma vivência defensiva ou um caso de angústia diante do instinto de procriação, como escreveria Sabina? E o "terrivel escândalo", a ruptura, emancipadora, da ligação com Jung, que antecedeu as obras principais dela, não seria um caso típico a mostrar "a destruição como causa do nascimento"?
Isaias Pessotti Picture by Juan Gris

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