Eles são héteros, muito machos, mas no Carnaval soltam a franga. Essa expressão significa “desinibir-se, geralmente assumindo um lado feminino, alegre”. Não é novidade, e acontece no Brasil inteiro. Eles não se fantasiam de mulher discreta. Precisa ser vulgar e desejável. Salto alto, seios pontudos, maquiagem pesada, decotes... e rebolation. No Bloco das Piranhas ou no Bloco das Virgens, nosso vizinho circunspecto fica irreconhecível até a Quarta-Feira de Cinzas. É tão divertido assim ser mulher?
Não existem blocos de mulheres fantasiadas de homens. Se a mulher quiser se desreprimir, a última fantasia será a de homem. “Mulher já pode se vestir de homem no dia a dia, usar calça comprida, camisa social, mocassim...e ninguém põe em dúvida sua sexualidade. Já o homem...”, diz o psiquiatra Luiz Alberto Py. “Quando Gilberto Gil e Caetano Veloso apareceram de pareô, a reação foi supernegativa. Em 1956, um artista plástico, Flávio de Carvalho, fez um desfile com homem de saia no Viaduto do Chá, em São Paulo, e foi vaiadíssimo.”
Minissaia, vestido de alcinha, frente única, tomara que caia, sandália, shortinho. É tudo ótimo no calor. Mulher tem um enorme leque de variações no vestuário. Homem é mais conservador. As novidades na roupa masculina desde os anos 60 foram a bermuda, a bata e a camiseta regata. Mesmo assim... Vários lugares noturnos e restaurantes admitem mulher de sandália, mas homem não. Mulher de short sim, mas homem de bermuda não.
Mas a roupa é só o visível. A fantasia de piranha desnuda outras fantasias. “O Carnaval é um rito profano e sagrado. O homem se veste de mulher porque quer ser mais afetivo de maneira escancarada, sair beijando todos, de qualquer sexo. Homem afetivo, nos outros dias do ano, é coisa de gay”, afirma o psicoterapeuta Sócrates Nolasco. “É um contraponto. Um momento do ano em que ele não precisa afirmar sua masculinidade. Mulher pode ser afetiva, carinhosa, extrovertida, dada, e nem por isso será tachada de ‘piranha’.”
Não se duvida que uma mulher seja mulher. Ela pode até ter relações amorosas ou conjugais com outra. Continua sendo mulher, caso não imite machos. Ela pode beijar amigos e amigas, abraçar, fazer carinho publicamente. Isso não fará dela “piranha” ou lésbica ou mesmo bissexual. A mulher pode, no trabalho, assumir atitudes estereotipadas masculinas – isso não fará dela um homem. O inverso é mais complicado.
É como se esses homens que se equilibram com pernas cabeludas sobre saltos altíssimos aproveitassem o Carnaval para exorcizar sua dificuldade de mostrar afeto ou fragilidade no dia a dia. Tudo é permitido porque é fingimento. No filme Se eu fosse você, em que Tony Ramos e Gloria Pires trocam de alma e papéis, as plateias o acham muito mais engraçado que ela. Porque Tony Ramos não se comporta exatamente como a sua mulher no filme. “A compulsão por futilidades e os trejeitos exagerados lembram mais o comportamento de um gay afeminado”, diz Nolasco. Para virar homem, Gloria Pires fala grosso, não abaixa a tampa do vaso e faz embaixadinhas – ela muda bem menos.
Os homens que se fantasiam de mulher para zoar à vontade fazem do Carnaval uma catarse de seus fetiches. Claro que só saem em bando. Coisa de macho mesmo. Porque sair sozinho vestido de mulher pode dar origem a outras interpretações.
“Todos, homens e mulheres, temos um lado homossexual”, diz Py. “A sexualidade é uma limitação brutal. A percepção de que a gente pertence a um sexo significa não pertencer ao outro, o que de certa forma nos rouba uma parte da humanidade. A mulher tem uma versatilidade comportamental muito maior. O homem não pode nem fazer carinho em outro homem. O Carnaval é a transgressão inocente, o liberou geral para desfrutar seu lado feminino sem perigo.”
Simpatizo com esses bandos de homens fantasiados de mulheres fálicas em tantos blocos espalhados pelo Brasil. Por um instante, eu me lembro de Freud. O pai da psicanálise dizia que a mulher sentia inveja do pênis. Não seria o contrário?
* Esta coluna foi escrita e publicada por mim na revista há exatos 4 anos, no Carnaval de 2010. Ontem, um francês me perguntou, em Paris, onde estou, fugida dos tamborins, por que tanto homem machão e cabeludo brasileiro se fantasia de mulher nos blocos de rua. Lembrei-me desse artigo e decidi republicá-lo. Continua atual.
Ruth de Aquino
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